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Críticas

Cineplayers

O falso "filme importante".

5,0

Ao começar a assistir O Juiz, faça um desafio consigo mesmo: conte no relógio 5 minutos e eu duvido que você não seja capaz de adivinhar exatamente o que vai acontecer pelas 2 horas e 16 minutos seguintes de projeção. Com um roteiro irritantemente linear, que telegrafa antecipadamente todos os seus conflitos e pontos de virada, é praticamente impossível o público não antever os desdobramentos da história logo de cara. O protagonista é um advogado frio, calculista e meio pilantrão de uma metrópole qualquer dos EUA? Sim! Há tempos ele cortou relações com a família, especialmente com o pai rígido e ingrato? Claro! Algum evento trágico o obrigará a refazer o contato com suas raízes? Óbvio! Essa aproximação com o passado, com o bom e velho espírito das cidades pequenas do interior americano, fará com que essa personagem evolua como pessoa? Preciso responder? Previsível deste jeito, não é difícil entender porque O Juiz não decola.

Hank Palmer (Robert Downey Jr.) é um dos advogados mais respeitados de Chicago. Admirado pelos clientes e temido pelos adversários de bancada, ele é um furacão nos tribunais (“Qual a sensação de saber que todos os seus clientes são culpados?" "É boa. Pessoas inocentes não podem pagar meus honorários”). Palmer é apresentado ao público num destes julgamentos, em que ele está prestes a usar mais uma das suas artimanhas não lá muito éticas pra livrar mais um ricaço da cadeia. Entre réplicas, tréplicas, objeções e apartes, ele recebe a notícia que sua mãe morreu naquela manhã, na pequena Carlinville, em Indiana (aparentemente um local fictício, já que a verdadeira Carlinville fica em Illinois), cidade em que nasceu, passou toda a infância e adolescência. Palmer faz as malas, se despede aos berros da sua esposa de quem está se separando, e parte para encontrar suas velhas raízes.

A viagem o obriga a retomar o contato com o pai, Joseph Palmer (Robert Duvall), juiz daquela comarca há mais de 40 anos, e com quem cortara relações desde que se mudara para a grande cidade, e seus dois irmãos, o mais velho Glen (Vincent D’Onofrio), um pequeno empresário local que, apesar de bem casado, guarda a frustração por não ter se tornado um grande jogador de beisebol, e o jovem Dale (Jeremy Stong), que ameniza a deficiência mental com as filmagens do cotidiano familiar com sua inseparável Super-8.

Se nos tribunais Hank é o advogado que esbanja a segurança e a autoconfiança esperada e paga pelos seus clientes, diante do pai a coisa muda. Seu olhar revela um misto de medo, cautela e reverência. O contato visual é evitado, o aperto de mãos e o abraço não são espontâneos, e o tratamento entre os dois, excessivamente formal. No lugar de “papai”, apenas um protocolar “juiz”; em vez de “filho”, “Hank”. Qualquer conversa entre ambos, por mais inofensiva que seja, é o estopim para que ressentimentos passados venham à tona. Esta mágoa terá que ser colocada de lado quando o juiz se vê envolvido na morte de um morador da região, e Hank é obrigado a colocar seu talento jurídico para salvar o pai.

Ao contrário do que o título sugere, O Juiz não pode ser considerado um filme de tribunal propriamente dito. Os fãs dos romances de John Grisham certamente vão encontrar elementos típicos deste subgênero (grandes embates jurídicos, depoimentos surpreendentes de última hora, e o suspense pelo veredito final etc.). Mas a proposta aqui é mais voltada ao drama familiar, à reconciliação entre pais e filhos e à valorização dos pequenos prazeres da vida. Reconheça-se que não era tarefa das mais fáceis dar um tratamento original a temas tão universais e já abordados à exaustão em diversos outros filmes (veja os casos dos mais eficazes Nebraska e Álbum de Família, só para citar alguns exemplos mais recentes). Mas O Juiz consegue extrapolar qualquer limite do aceitável de situações clichês, emoções artificiais e os malfadados momentos inspiradores.

Pra piorar, O Juiz tem aquela irritante embalagem de “filme importante”, o único que tem a coragem de abordar os chamados “grandes temas”. Este posicionamento quase que mercadológico perante o público é rapidamente desmentido pela pobreza do material e pelo modo superficial e apelativo como ele é desenvolvido. O roteiro bem intencionado (no mal sentido da expressão) torna O Juiz um filme anacrônico, velho de nascença e mais próximo de uma Hollywood mais ingênua e que evaporou no tempo (não à toa, em um dos diálogos, há  uma referência explícita a O Sol é Para Todos). Talvez os autores do script não saibam, mas nos dias de hoje os tais “grandes temas” já são enfrentados de forma muito mais profunda e adulta na maioria dos seriados da televisão americana.

A direção de O Juiz coube a David Dobkin. Para quem ostenta no currículo comédias descartáveis como Bater e Correr em Londres, Penetras Bons de Bico e Eu Queria Ter a Sua Vida, a escolha de Dobkin para encarar um drama mais sombrio (ao menos essa era a intenção) não deixa de ser estranha e arriscada. Talvez sua presença atrás das câmeras explique a inserção de inadequados momentos de humor ao longo do roteiro. Alguns deles são intencionais, como os provocados pela inexperiência do advogado local que inicialmente assume a defesa do juiz (subtrama pra lá de desnecessária), pela escolha dos jurados, e pela dúvida sobre a paternidade de uma adolescente. Outros, derivam de incoerências nas motivações ou caracterização dos personagens: a transa de Hank num bar na mesma noite do enterro da mãe (quem nunca sentiu tesão no exato dia da morte de um nossos entes mais queridos, não é mesmo?), a pequena e estranha caneca do promotor Dwyght Dickham (Billy Bob Thornton), que parece abrir em camadas, e acentua o seu lado sinistro e maquiavélico (o fato de ele estar apenas exercendo sua função de titular de uma ação penal é irrelevante, afinal o filme precisa de um vilão!), a contraluz que invade o cenário nas primeiras aparições em cena do juiz Palmer e do promotor e no momento que Hank se aproxima do caixão da mãe, quase que mitificando os três personagens. Intencionais ou não, estes momentos cômicos não amenizam a seriedade da trama, mas sim a diluem e a tornam ainda mais rasteira do que ela naturalmente é.

O Juiz falha até mesmo quando trafega pela zona de conforto que ele mesmo escolheu: o acerto de contas entre pai e filho. O público sabe do ressentimento que um tem pelo outro e, por isso, aguarda o grande embate entre os dois, quando os segredos do passado serão revelados. Quando isso acontece, a surpresa é que... não há surpresas. Ambos fizeram as escolhas que acharam as mais corretas e prudentes para os seus respectivos momentos de vida: Hank exerceu o seu típico papel de filho rebelde, insolente e contestador da autoridade paterna; já o juiz  assumiu a figura do pai rígido, firme, mas ao mesmo tempo atento às saídas dos trilhos de suas crias. Talvez porque estes conflitos de geração são assim mesmo e O Juiz não traga nada especialmente novo ao tema, talvez porque o diretor constrói a cena sem um pingo de sutileza (os personagens estão envoltos num tornado!), a coisa não funciona. Mesmo a potencial tensão entre Hank e Glen, por causa de um episódio específico do passado, é mal aproveitada. E a opção de tornar o irmão mais jovem num deficiente mental também não se justifica.

A qualidade das interpretações é, de longe, o que O Juiz tem de mais forte. Robert Downey Jr dá um tempo na franquia Homem de Ferro, e volta a demonstrar um talento que vai se perdendo em fitas de ação e fantasia. Ainda que sua atuação seja um pouco exibicionista além da conta, com alguns tiques do egocêntrico e arrogante Tony Stark, Downey consegue superar este incômodo inicial com uma composição que combina a ironia e o charme de um George Clooney e a intensidade de um Al Pacino (aproximação que é involuntariamente acentuada pela presença de Duvall em cena e a lembrança de ambos em O Poderoso Chefão 1 e 2). Duvall está melhor ainda, com o seu já conhecido estilo low-key, de quem nem parece estar atuando. Seja como um juiz veterano que acredita na força do seu legado, como um pai ranheta e exigente, como um avô carinhoso, ou como um portador de uma grave doença, o ator convence em todos os níveis. O roteiro piegas, esquemático e previsível faz tudo para estragar, mas nos -  poucos - momentos em que O Juiz funciona, o crédito deve ser dado ao talento de Duvall e ao carisma de Downey Jr.).

O restante do elenco, embora de qualidade, está claramente desperdiçado. Vera Farmiga (bem acima do peso) faz o possível para dar humanidade a um fiapo de personagem. Vincent D’Onofrio mostra que, desde que viveu o soldado psicopata em Nascido Para Matar (e lá se vão quase 30 anos), é um dos atores mais subestimados da sua geração. E Billy Bob Thornton é prejudicado pelo maniqueísmo com o que o roteiro o caracteriza. Três atores de calibre, todos eles mais qualificados do que o próprio material que defendem.

O Juiz promete muito e entrega pouco. A produção classe A, o elenco repleto de atores reconhecidamente talentosos, e a trama potencialmente interessante, conferem ao filme um falso status de importância que ele não consegue atingir. Entre os vários responsáveis para o morno resultado final, o roteiro quase ginasial é aquele que deve ser receber a pena mais severa. Sua previsibilidade, linearidade e covardia, torna decepcionante um trabalho que tinha tudo para dar certo.

No final das contas, Meritíssimo, se os membros do júri chegarem a um veredito, O Juiz será considerado não propriamente um filme fraco, mas apenas banal.

Comentários (2)

Carlos Dantas | quinta-feira, 13 de Novembro de 2014 - 20:02

Pensei que fosse um tradicional filme de tribunal. Mesmo com as críticas, quero dar uma conferida.

Victor Henrique Schmidt Timm | terça-feira, 27 de Janeiro de 2015 - 21:14

A gente passa todo filme esperando que o Tony Stark coloque sua armadura. Porquê é um personagem muito parecido.

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