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Críticas

Cineplayers

Um certo tipo de horror atmosférico.

8,0
O interminável e fútil debate entre forma e conteúdo encontra grande respaldo num dos lados da balança no gêneros e subgêneros do terror. Com o propósito de desconcertar o espectador, muitos diretores optam por abdicar de uma história coesa para concentrarem-se em empoderar aquilo que podemos chamar de a alma do filme – sua atmosfera ou qualquer outra palavra que se use para tentar exprimir o caráter indescritível de uma obra.

O Lamento certamente é um terror atmosférico, mas achei particularmente interessante a maneira pela qual Hong-Jin Na chegou a esse ponto. Não há abdicação da história, mas ela é torcida e retorcida por diversas vezes ao longo das quase três horas de filme, colocando o espectador num estado de confusão e desordenamento que intensifica não apenas o terror, mas as emoções do filme de maneira geral.

Trata-se de um filme de suspense, com assassinatos e, a princípio, a busca de uma equipe de policiais para chegarem ao assassino. As distorções da história não encontram-se na trajetória dos policiais em desvender o whodunit. É que a narrativa descortina diversas trajetórias, que vão sendo percorridas pelos personagens, juntos ou separados, on e off camera, durante o segundo ato e parte do primeiro. Existe muita coisa em cheque – e fatalmente a sobrevivência de uma comunidade rural inteira pode estar sob ameaça.

Enquanto os personagens se lançam a esses diversos caminhos, muitos dos quais darão em becos sem saída, acontecimentos horríveis e sangrentos vão ocorrendo no vilarejo, aumentando a urgência da investigação ao mesmo tempo em que satisfaz a sede por terror do espectador, colocando-o em clima de suspensão, aliado com a história. Mas é com a possessão demoníaca de um dos personagens que as apostam ficam mais altas de vez, e o processo de introdução e empatia criado pelo protagonista é determinante para que o filme mantenha um tom grave e horripilante até o final.

Os aspectos que dizem respeito a narrativa e história de O Lamento são bastante interessantes - principalmente para que se observe como o filme tem bastante potência dramática, não só para segurar duas horas e quarenta minutos de metragem, mas fazendo com que elas passem rápido e o payoff catártico seja enorme. Porém, os aspectos visuam tomam conta do filme de tal forma que não podem deixar de serem mencionados.

Desde a locação, num vilarejo simples entre as montanhas da Coréia do Sul, aos planos tortos e angulares, o filme formata suas imagens percorrendo o horror clássico, o noir, o zumbi e o suspense contemporâneo com destreza e convicção. Sem jamais recorrer a sustos baratos, os planos e contraplanos municiados pelo silêncio orquestral e pelos sufocantes ruídos naturais são protagonistas na hora de tirar o espectador de um estado de acomodação, elevando o clima de terror e perigo.

Alguns planos são especialmente convidativos. As vastas paisagens naturais no começo do filme que contrastam repentinamente com um close-up do velho japonês perfurando uma minhoca para usá-la como isca expressa desde o início um dos temas recorrentes durante o filme – o choque entre o belo e o natural com a violência e a morte (uma justaposição muito similar acontece quando um motoqueiro enquadrado num grande plano geral encontra uma mulher morta pendurada pelo pescoço).

Existem ainda duas sequências que merecem menção por serem muito poderosas no contexto do filme, repletas de barulho e cadenciadas por justaposições velozes de uma imagem para a outra – sequências de exorcismo, que remete o espectador invariavelmente ao clássico de Friedkin, que pertubam por serem acima de tudo turbulentas e cacofônicas, mas também por se relacionarem com personagens vivos, cujos desejos e urgências estão realmente em jogo. Talvez justamente venha daí a alma de O Lamento – a capacidade de Na em gerar sensações fortes no espectador dentro de um contexto estruturalmente coeso de gênero, através das imagens e sons, mas sem abrir mão de uma história cuja tragédia anunciada certamente nos lançará ao chão.

Comentários (2)

Felipe Lima | segunda-feira, 26 de Dezembro de 2016 - 00:24

Filmaço e crítica à altura. Parabéns.

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