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Críticas

Cineplayers

De peculiar, apenas o título.

5,0
No universo bizarro de O Lar das Crianças Peculiares (Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children, 2016) há uma garota que de tão leve, precisa usar sapatos de chumbo para não sair voando; um rapaz capaz de dar vida a bonecos e seres inanimados; uma jovem que coloca fogo em tudo o que toca; uma menininha de aparência adorável que esconde na nuca, por baixo dos cachos dourados, uma bocarra faminta, enquanto outra possui uma força descomunal para sua idade e tamanho. Responsável por um lar que abriga essas crianças “peculiares”, a Srta. Peregrine (Eva Green) também é portadora de poderes especiais, sendo capaz de manipular o tempo e se transformar num pássaro. Quando o jovem Jacob (Asa Butterfield) acaba conhecendo essas pessoas após a misteriosa morte de seu avô, ele descobre um universo paralelo através de uma fenda temporal que o transporta para o País de Gales em plena Segunda Guerra Mundial. 

A sinopse baseada num best-seller infantojuvenil de 2011 indica um material farto para Tim Burton se esbaldar em seu cinema adepto do exagero e do bizarro. As crianças peculiares que habitam esse orfanato nada mais são do que personagens muitos próximos do universo do diretor, que sempre procurou retratar em seus filmes jovens sensíveis e de bom coração, porém incompreendidos e isolados por uma sociedade homogeneizada incapaz de ver com bons olhos o que é fora de padrão. Se a beleza desse cinema sempre esteve na capacidade de Burton em encaixar esses corpos estranhos de maneira muito orgânica e natural dentro de situações e cenários cotidianos, é estranho ver como o diretor parece ter desaprendido e feito de O Lar das Crianças Peculiares um filme tão fragmentado, forçado, sem conjunção e desprovido de qualquer autenticidade.

Após a década de 1990, Burton foi aos poucos diminuindo o ritmo e perdendo a sinceridade de sua visão para uma comodidade frouxa, deixando pra trás toda a anarquia, inconsequência e real sensibilidade que fez de seu primeiro cinema algo tão autoral e marcante. O Lar das Crianças Peculiares é contaminado pela linguagem pobre, simplista e formulaica do cinema infantojuvenil comercial de hoje, seguindo uma cartilha previsível que subestima a inteligência do seu público-alvo e recorre a muitas concessões de roteiro, soluções preguiçosas, personagens estereotipados e elenco fora de sintonia (Samuel L. Jackson e Judi Dench, em especial, só pagam mico). Nem a costumeira concepção visual fantástica de Burton se mostra inspirada aqui, sendo até hoje o seu filme menos autêntico, esteticamente falando. 

O subtexto envolve alegorias sobre os horrores da guerra, seus fantasmas, seus monstros e seus traumas, e isso tudo se reflete na condição isolada e especial das crianças, órfãs desses males e frutos de uma geração corrompida pela violência, desumanidade e preconceito. As idas e vindas no tempo permitem o sonho de uma realidade alternativa em que a guerra nunca de fato alcança os inocentes. Mas a falta de inspiração resulta num filme comandado por personagens que são bizarros apenas por ser e toda a peculiaridade deles é somente mero chamariz de público, uma desculpa para carregar em efeitos especiais vazios, fazendo deles apenas protótipos ocos, sem alma e coração, como num circo de horrores. Burton separa muito categoricamente o estranho do normal, de forma que as várias realidades do filme jamais se encaixam ou formam uma conclusão coesa e orgânica, o que acaba fragmentando todo o trabalho em atos incongruentes e uma notável falta de ritmo. Ao mesmo tempo, ele não se decide entre o tom infantil e o adulto, soando ora condescendente e moralista, ora violento, gráfico, anárquico e grosseiro. 

O que vai valer de consolo para os admiradores do diretor são os vários diálogos que ele estabelece com seus filmes anteriores - os arbustos esculpidos e o personagem que dá vida a humanoides tal qual Vincent Price em Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), a mocinha Emma (Ella Purnell) que evoca em aparência e sobrenome a jovem Sandra Bloom (Alison Lohman) de Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas (Big Fish, 2003), e Eva Green quase que remontando um tipo de Willy Wonka particular. Mas embora deliciosas, essas referências só reforçam que o Burton que todos amam ficou para trás, nesses filmes antigos, e hoje é apenas uma sombra do que foi, consumido pelo excesso de apelo comercial, entregando histórias desprovidas de qualquer ternura ou senso narrativo e personagens que nem de longe representam o outsider que ele sempre foi. 

Comentários (4)

Rodrigo Cunha | segunda-feira, 03 de Outubro de 2016 - 19:08

Excelente crítica.

Só discordo da apresentação, que estava achando fantástica. Mas quando a história engrenou, deu para ver que era uma besteira só. As ameaças são ridículas e, como você disse, as características especiais são muito mal exploradas e a ligação dos mundos inútil.

Uma pena, tinha tudo para ser um novo clássico da fantasia moderna.

Conde Fouá Anderaos | terça-feira, 04 de Outubro de 2016 - 07:38

Excelente texto. Só que sempre achei o diretor irregular. No meu entender, seu cinema sempre foi marcado por esses altos e baixos. Vou, apesar da recepção fria até então, conhecer essa obra também.

Luis Gustavo Wistuba | terça-feira, 04 de Outubro de 2016 - 14:30

Achei a nota um pouco alta ahahhaha.
Um detalhe: não acho que ele tenha colocado os arbustos em forma de animais para homenagear o Edward. É porque, no livro, eles aparecem também.

Arthur Brandão | quarta-feira, 05 de Outubro de 2016 - 02:19

Tim Burton não me surpreende mais.

Belo texto Heitor!

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