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Críticas

Cineplayers

O Leopardo é o filme mais pessoal de Luchino Visconti, aquele em que o diretor expõe o principal dos seus temas: o da decadência.

9,0

"É preciso que as coisas mudem de lugar para que permaneçam onde estão"
Tancredi Falconeri, em O Leopardo (Il Gattopardo)

O ano de 2006 marca, ao mesmo tempo, os aniversários em números redondos de nascimento e de morte de Luchino Visconti. No último dia 17 de março, completou-se 30 anos da ausência do grande diretor entre nós. Em novembro próximo, ele estaria completando um século de vida. Nascimento e morte. Florescimento e decadência. Começo e fim. Nada mais viscontiano do que isso. Como se estivesse presente entre nós, Visconti nos obriga a repensar sua obra, iluminada agora pelos novos tempos que o cineasta não teve oportunidade de presenciar. É tempo de celebrar Visconti. Não apenas nas respectivas datas simbólicas, mas a todo instante.

De toda sua extensa e rica filmografia, talvez a obra que mais resume suas obsessões seja O Leopardo. Adaptado do romance de mesmo nome, de autoria de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, publicado postumamente, Visconti viu na história do Príncipe Fabrizio Salinas a sua própria história. Filho de um aristocrata e consciente da chegada dos novos tempos, simbolizado na proximidade do novo século (ao qual ele não se via pertencer), o diretor encontrou nas palavras de Lampedusa o seu elemento. Fez sua fita mais pessoal, apaixonada e amargurada, em que desnuda o mais caro dos seus temas: o da decadência.

A história é ambientada nos anos 1860. A Itália vive umas das épocas mais conturbadas de sua história, aquela que se tornou conhecida por Risorgimento. Os estudiosos do período costumam situar neste instante o começo da unificação do país, até ali formado por uma plêiade de reinos, que iam desde o norte desenvolvido até o sul agrário e mais atrasado economicamente. O filme começa justamente com o desembarque das tropas de Giuseppe Garibaldi (aquele mesmo que lutou aqui no Brasil, na Guerra dos Farrapos) na Sicília. Os rebeldes lutam pelo fim da aristocracia rural e da sociedade construída à base de benesses e privilégios. O Príncipe Salinas (Burt Lancaster) resolve refugiar-se temporariamente com a família em Donnafugata, cidade em que costuma passar regularmente suas temporada de férias. Antes de partir, no entanto, acompanha a adesão de seu sobrinho Tancredi (Alain Delon) ao grupo garibaldino. É da sua boca que saem as palavras que fazem o Príncipe despertar para os acontecimentos: “é preciso que as coisas mudem de lugar para que permanecem onde estão”. Neste instante, percebe que, ainda que de forma lenta e silenciosa, o ideal de renovação e de unificação veio para ficar. Fabrizio Salinas capta o exato início da movimentação das estruturas sociais. Torna-se consciente da proximidade do fim da aristocracia que ele incorpora e personifica. Diante do imponderável, incentiva a participação do sobrinho e começa a tecer, dentro do possível, uma estratégia para a manutenção de sua casta social.

Em Donnafugata toma conhecimento do surgimento de uma nova liderança local, na pessoa de Dom Calogero (Paolo Stoppa), representante de uma classe recém promovida na estratificação social: a burguesia. Consultando o organista da igreja, Dom Ciccio, durante as caçadas matinais, Salinas descobre que Dom Calogero enriqueceu através de diversas operações imobiliárias e, por isso mesmo, está apto a pleitear sua participação nas decisões da comunidade. O Príncipe Salinas entende o recado e passa a trabalhar nos bastidores pela união da seu sobrinho (neste momento, já devidamente filiado às tropas governistas, que haviam derrotado o exercito de Garibaldi) com a filha de Calogero, Angélica (Claudia Cardinali), ainda que isso represente o sacrifício da felicidade de sua tímida filha Concetta, eterna apaixonada por Tancredi. O matrimônio significa a conciliação da aristocracia falida e decadente com a burguesia enriquecida e ascendente. É tudo aquilo que Salinas deseja. Mudar sem tirar as coisas do lugar.

A passagem do bastão é simbolicamente materializada num longo baile, em que nobres e burgueses co-habitam o mesmo espaço (fato até então impensável), e presenciam a união das duas classes. Fabrizio Salinas passeia pelos diversos salões da mansão em que o evento se realiza. Sente a morte se aproximar. Percebe que seu tempo já passou. Que não faz mais parte daquele mundo. Crônica de uma morte anunciada. Morte não física, mas sobretudo da alma e do espírito.  Resta-lhe retirar-se desta vida, em direção à escuridão.

Toda a essência da obra viscontiana passa por O Leopardo. Aristocrata de nascimento, comunista por convicção, Luchino Visconti se considerava, ele mesmo, um homem fora do seu tempo. Banhado desde cedo com a mais alta cultura, era um expert nas artes, na pintura, nas óperas (outra de suas grandes paixões) e na literatura. Encontrou no cinema o veículo para expressar suas paixões. Logo de cara, em 1942, fincou a pedra fundamental do movimento neo-realista. Com Obsessão (Ossessione), Visconti transpôs as páginas do romance policial de James M. Cain, The Postman Always Rings Twice, para as margens do Vale do Pó. Os aspectos de suspense da história de uma dona de um restaurante de beira de estrada, que acerta com um forasteiro o assassinato de seu marido, ganhou contornos trágicos, humanos e sociais.

Ao mesmo tempo que ajudou a fundar o neo-realismo, Visconti foi o primeiro a dar sinais do seu esfacelamento. Mais uma vez, nascimento e morte. Florescimento e decadência. Em 1954, com Sedução da Carne (Senso), o diretor abandona o estilo documental e imprime em suas obras um tom operístico, grandioso, carregado de alta refinação artística, características que passaram a ser sua marca registrada. Sedução da Carne traz a Itália no mesmo período histórico de O Leopardo. Enquanto que este nos traz os acontecimentos do sul do país, aquele conta os episódios ao norte, onde a Velha Bota vivia sobre a dominação do Império austro-húngaro.

Em 1960, Visconti realiza uma de suas principais obras (para muitos, a melhor), Rocco e Seus Irmãos (Rocco e Suoi Fratelli). Nela, o diretor aborda outro de seus temas principais: a dissolução da família. Nas telas, os a mãe e os cinco filhos da família Parondi vêm para Milão, no norte industrializado Norte, tentar a sorte grande. Esse movimento trará conseqüência trágicas para os personagens de Alain Delon, Renato Salvatore e Anne Girardot.

Mesmo depois de O Leopardo, no qual o tema da decadência e da morte assume um grau maior, Visconti continua em busca de suas obsessões. Ela está presente na sua trilogia alemã, formada por Os Deuses Malditos, Morte em Veneza e Ludwig, A Paixão de um Rei. Dentre esta trinca, é em Morte em Veneza, adaptado do romance de Thomas Mann, que a decadência e a finitude mais afloram. A história da paixão do compositor Gustav Aschenbach (Dirk Bogarde) pelo jovem Tadzio, mais sensorial do que sexual, ao mesmo tempo que celebra a beleza e perfeição da juventude, ratifica a preocupação do personagem com a proximidade do seu fim, dos anos que não mais lhe voltarão.

Visconti fecha sua filmografia com duas obras em que a morte torna-se um dos personagens principais. Em Violência e Paixão (Gruppo di Famiglia in un Interno), o intelectual vivido por Burt Lancaster (O Professor) é obrigado a dividir sua privacidade com inquilinos no andar de cima, pessoas de origens nobres mas de hábitos absolutamente decadentes. Por último, em O Inocente (L´Innocente), seu cair do pano, Visconti, ele mesmo já combalido por um derrame, o que lhe impedia inclusive de olhar pelo visor da câmera, volta suas atenções para a aristocracia decadente da Itália do Século XIX para contar a história de Túlio Hermil (Giancarlo Giannini), capaz de praticar atos de extrema selvageria em nome da sua honra, supostamente ofendida por uma relação extra-conjugal de sua mulher (Laura Antonelli).

Consciente de que suas origens o faziam parecer um personagem de séculos passados, Visconti achava que seu filme síntese seria a adaptação de Em Busca do Tempo Perdido, a majestosa obra de Proust. Foi seu grande sonho, acalentado por diversos anos, nunca tornado realidade.

Em Busca do Tempo Perdido realmente poderia se tornar seu filme mais pessoal. Na sua falta, O Leopardo assume esse posto. Para tanto, Visconti lança mão de um alter-ego: o Príncipe Frabrizio Salinas. Vivido por um homem da estatura de um Burt Lancaster (no auge da popularidade, recém vencedor do Oscar por Entre Deus e o Pecado), Salinas é a autoridade em pessoa. Os planos de abertura do filme já deixam isso claro. Durante os créditos, a câmera vagarosamente vai se aproximando da mansão da família, ao som da belíssima trilha de Nino Rota. Ela pousa na beirada da janela. No interior do recinto, pessoas recitam uma novena. Barulhos vêm de fora da sala. Algo aconteceu. Os mais jovens estão curiosos e querem ver o ocorrido. Dão uma olhada de canto de olho para a porta, como que querendo escutar ou adivinhar o que se passa. Mas a novena não pode ser interrompida, já que um homem, ao centro, permanece rezando com fervor, alheio ao que acontece ao mundo exterior. Sem sua autorização, os demais não podem nem pensar em se retirar. A oração termina, as pessoas se levantam, e o chefe do clã se apresenta à porta para saber o motivo de tanta algazarra. Só neste instante, o restante da família permite-se levantar.

Ao mesmo tempo que transpira autoridade, Salinas demonstra toda uma fragilidade. Homem de 45 anos, velho para os padrões da época, vê antes de todos o contexto histórico no qual se insere. Sabe que seus dias estão chegando ao fim. Os tempos dos leopardos e dos leões vão dar lugar ao dos lobos e dos chacais. A aristocracia latifundiária perdeu seu espaço. A burguesia tomará seu lugar. É preciso mudar para que tudo fique no mesmo lugar.

Visconti pontua essa decadência ao longo de todo a fita: no desembarque poeirento nas ruas de Donnafugata, nas latrinas alocadas dentro de um recinto no salão de baile, nas adolescentes que pulam tal e qual macacas no sofás e, principalmente, no genial travelling lateral que passa por todos os integrantes da família Salinas, sentados no banco da igreja, espectadores esfarrapados, cobertos de poeira, com os semblantes estáticos, olhares perdidos no ar, fantasmas num mudo real, ao qual sentem não mais pertencer.

A clássica seqüência do baile – que domina quase um terço da fita – marca simbolicamente o destronamento da aristocracia em troca da burguesia. Duas cenas materializam a modificação  no tecido social: aquela em que Salinas fita obsessivamente um quadro que retrata a morte de um personagem à beira da cama, e que lhe remete à própria morte. E a outra, quando Salinas mira-se no espelho e, da sua face, rola uma lágrima.

Um personagem tão rico quanto este exige um ator inspirado. E Visconti o encontrou numa figura das mais improváveis. Burt Lancaster. Americano até o último fio de cabelo, beirava ao ridículo imaginar que ele seria capaz de personificar na tela um príncipe siciliano do século XIX. O próprio Visconti repudiou a idéia. Sua pretensão inicial era Laurence Olivier que, doente, não pôde embarcar no projeto. Sem o ator principal e necessitando de mais de U$ 3 milhões para completar o orçamento, a Fox sugeriu o nome do astro ianque, que ao menos poderia significar algum retorno do investimento. “Um cowboy americano!”, esbravejava Visconti a respeito de Lancaster. Após muitas idas e vindas, os dois se acertaram, tornaram-se amicíssimos e voltaram a trabalhar juntos 11 anos depois. De quebra, Lancaster provou que todos estavam errados. O Leopardo é, provavelmente, sua melhor atuação para o cinema, o personagem de uma vida. O feito é de se admirar numa produção internacional como esta, em que os atores falavam em inglês, francês e italiano e, ao final, dublavam tudo para a língua o italiano.

Ao lado de Burt, nos papeis principais, Alain Delon traz todo seu carisma e boa estampa ao papel do camaleão Tancredi. Ambicioso, faz alianças com as pessoas que mais lhe são convenientes. E sua face não fica vermelha ao justificar a mudança de lado durante o Risorgimento. Como par romântico de Delon, Visconti escalou Claudia Cardinali. No papel de Angélica, Cardinali personifica o animal feminino em pessoa, passando do angelical para o sensual num mesmo plano. Repare como a atriz lança mão de artifícios como passar a língua pelos lábios, um gesto quase erótico, que potencializa o lado romântico com Tancredi. O próprio Salinas sente-se atraído sexualmente por Angélica, tanto que desperta o ciúme em seu sobrinho, durante a seqüência do baile. Visconti reservou à Cardinali três grandes seqüências: sua entrada na mansão da família Salinas, seguida do zoom no rosto de Delon; sua corrida até a casa de Delon, durante a chuva, quando recebe a notícia que este chegou da Guerra; e, finalmente, a mais famosa, sua sonora e escandalosa gargalhada no meio do jantar, logo depois de ouvir uma piada de duplo sentido de Tancredi.

Completa o elenco Paolo Stoppa, como Dom Calogero, perfeito na figura do sujeito de pouco refinamento cultural, mas uma raposa nos negócios e na administração do dinheiro. Terence Hill e Giuliano Gemma, antes de ficarem famosos no western-spaghetti, têm pequenas participações.

Visualmente, O Leopardo não poderia ser mais belo. Visconti era um esteta. Todos os planos são milimetricamente pensados, a posição da câmera, os gestos. Além disso, o diretor, como de hábito, contou com sua equipe de trabalho de confiança: Giuseppe Rotuno na fotografia; Maria Garbuglia no desenho de produção; Piero Tosi nos figurinos (indicados ao Oscar); e Nino Rota na partitura musical (uma de suas mais belas composições). Em suas respectivas pastas, todos contribuíram para o primor visual da fita. Em tempo: O Leopardo foi laureado com o Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano.

Ainda que O Leopardo tenha tomado certas liberdades com seu material de origem (no livro, a história prossegue além da seqüência do baile e o destino do casal Tancredi e Angélica não se prenuncia tão feliz quanto no filme), o que foi para a tela é o sumário da vida e obra de Luchino Visconti. Dom Fabrizio Salinas e Visconti se confundem. Suas percepções em relação à própria condição histórica são as mesmas. Ambos eram homens que viviam fora do seu tempo. Visconti usou o cinema para expressar esse seu sentimento. Deixou impresso no celulóide toda sua obsessão pelos seus temas que mais o assombravam. Partiu há 30 anos, nos legando uma obra das mais ricas artística e intelectualmente.

Não. Pensando melhor, Visconti permanece conosco, nos ensinando a cada filme a refletir sobre nossas vidas.

Comentários (3)

Alexandre Koball | quinta-feira, 05 de Fevereiro de 2015 - 12:51

Assisti ontem, finalmente, uma das minhas principais dívidas. A crítica ficou belíssima, e inclusive enriquece a experiência de assistir ao filme.

Guilherme Rodrigues | sábado, 11 de Março de 2023 - 23:23

"no genial travelling lateral que passa por todos os integrantes da família Salinas, sentados no banco da igreja, espectadores esfarrapados, cobertos de poeira, com os semblantes estáticos, olhares perdidos no ar, fantasmas num mudo real, ao qual sentem não mais pertencer." Esse travelling é matador, realmente!

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