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Críticas

Cineplayers

O bom trabalho dos irmãos Hughes na direção é praticamente arruinado por uma desnecessária pregação religiosa.

6,0

O Apocalipse sempre foi um tema fascinante para o cinema. Incontáveis são os filmes que se passam em um mundo pós-destruição. Nunca, porém, este fascínio foi tão grande como nos últimos anos. Seja em função do medo relacionado ao que acontece com a natureza, seja em função de um simples pessimismo no que diz respeito ao ser humano, um futuro desolador e inócuo tem aparecido com frequência cada vez maior nas telas, visto os recentes Eu Sou a Lenda, WALL·E, Zumbilândia, 2012 e 9 - A Salvação, para citar apenas alguns. O Livro de Eli, novo trabalho dos irmãos Huhes (Do Inferno) é o mais novo exemplar a se juntar à lista.

Situado em um futuro próximo, o filme conta a história de um andarilho solitário, que depois será apresentado como Eli. Caminhando por estradas praticamente vazias e um mundo quase deserto, Eli tem como objetivo chegar até a costa oeste dos Estados Unidos, onde acredita haver um resquício de civilização. No caminho, porém, Eli encontra Carnegie, o dono de uma pequena comunidade no deserto. Há anos ele busca um livro que, segundo acredita, fará com que tenha um poder ainda maior do que já possui. Quando descobre que o tal livro está em poder de Eli, Carnegie se dispõe a fazer de tudo para obtê-lo.

Mesmo com óbvias qualidades para figurar como bom entretenimento, O Livro de Eli tem pouco a acrescentar a este subgênero. Do protagonista solitário aos cenários desolados, dos vilões bárbaros às dificuldades em se encontrar água, nada no filme é diferente daquilo que já se viu em outras obras pós-apocalípticas. Os irmãos Hughes, porém, surpreendem com um início incrivelmente bom, que deixa no espectador a impressão de estar diante de um filme com visão e um certo tom autoral. Demonstrando segurança, os cineastas iniciam a história sem pressa, de forma lenta e praticamente sem diálogos, evitando o excesso de exposição ao apostar nos aspectos técnicos para apresentar o cenário.

E, neste sentido, são extremamente bem sucedidos. Com a colaboração do renomado diretor de fotografia Don Burgess, os irmãos Hughes acertam ao praticamente não utilizar cores, realizando um filme quase em preto e branco com para realçar o sentimento de um mundo sem vida. Além disso, a direção de arte também se demonstra inspirada, com vastas locações desérticas, carros destruídos e construções despedaçadas, colaborando para a construção de um ambiente devastado e em ruínas. Assim, pouca explicação verbal é necessária: apenas as imagens são suficientes para o espectador compreender o contexto e as dificuldades de se sobreviver em um cenário como aquele.

Infelizmente, pouco a pouco, O Livro de Eli vai se distanciando de qualquer abordagem mais diferenciada para se render às fórmulas comerciais do cinema norte-americano. Assim, não demora muito para que o protagonista seja desafiado por marginais, recurso inserido com o único e claro objetivo de fazer o filme ter uma cena de ação logo no princípio. A partir daí, os lugares-comuns começam a ganhar espaço na trama, com o surgimento do vilão e seus comparsas e a habilidade jamesbondiana de Eli de jamais levar porrada ou ser atingido por balas.

O desenvolvimento do personagem, aliás, é outro dos problemas de O Livro de Eli. Se o roteiro de Gary Whitta acerta ao não explicar como foi e o que causou a guerra (isso não tem importância à história), erra ao oferecer pouquíssimo material ao espectador para que ele possa construir uma ideia de quem seja o protagonista, onde ele aprendeu a lutar ou porque parece invencível. É difícil estabelecer uma identificação com Eli, tanto pelo fato de a plateia não saber qual o objetivo de sua caminhada quanto por simplesmente não conhecê-lo. Por consequência, a jornada do personagem não desperta qualquer emoção e, se o filme mantém interesse até o final, é graças à direção dos irmãos Hughes.

O estilo adotado pelos cineastas é, sem dúvida, o grande atrativo de O Livro de Eli. Os Hughes sabem qual mundo desejam apresentar à plateia e o entregam de forma extremamente eficaz. Mais do que isso, os diretores também demonstram criatividade na construção de ótimas cenas de ação, como a luta de Eli com os marginais, vista somente através de silhuetas, e o tiroteio na residência do casal de idosos. Este, aliás, é o único momento do filme que merece ser lembrado. Trata-se de uma sequência na qual os Hughes demonstram virtuosismo, acompanhando o tiroteio em um plano-sequência: a câmera circula entre o interior da casa, onde se encontram os mocinhos, e o exterior, onde estão os vilões, sem qualquer corte visível (claro que eles existem e há inserções de CGI, mas tudo é feito como se fosse uma única tomada).

É uma pena que este eficiente trabalho de direção seja jogado por terra assim que é conhecida a natureza do livro que dá título à obra. A partir deste momento, assistir O Livro de Eli é quase como sentar em um banco de igreja para acompanhar uma missa. O roteiro e os cineastas parecem tentar desesperadamente convencer a plateia que acreditar em Deus é o único caminho para a salvação. De forma praticamente inexplicável, a produção deixa de ser uma interessante visão sobre um futuro pós-apocalíptico para se tornar uma descarada panfletagem religiosa cristã, como se tivesse o objetivo de conquistar mais fiéis seguidores.

Não que este aspecto não pudesse estar presente na produção. Em certo momento, por exemplo, o vilão afirma que “o livro é uma arma”. Nesta fala está a semente para um tema que poderia fazer de O Livro de Eli um filme capaz de, além de entreter, gerar uma discussão relevante. A religião é uma arma, uma forma de se dominar o povo, como acredita Carnegie, ou é o caminho para a luz e para a salvação, tal qual Eli a enxerga? É uma pena que falte ousadia aos responsáveis pelo filme para levar esta reflexão adiante; eles optaram por utilizar o ato final de O Livro de Eli como uma forma de enfiar goela abaixo do espectador sua visão religiosa – e, independente da crença de quem assiste o filme ou de esta visão estar certa ou não, é uma conclusão equivocada para a história.

Enquanto isso, no terreno das atuações, o único que capaz de oferecer algo diferenciado é Gary Oldman. Ainda que a construção psicológica de seu vilão jamais fuja da superficialidade, Oldman (que, convenhamos, deveria interpretar somente bandidos) oferece intensidade e um grau de divertida psicopatia ao papel, relembrando o Stansfield de O Profissional, um dos melhores trabalhos de sua carreira. Já Denzel Washington está apenas eficiente como o protagonista, enquanto Mila Kunis se contenta em aparecer linda, mesmo que, naquele mundo, sua personagem provavelmente esteja há muito tempo sem tomar um banho decente.

De modo geral, O Livro de Eli é um entretenimento razoável, com diversos altos e baixos. Apesar de algumas derrapadas, os irmãos Hughes são habilidosos ao prender a atenção da plateia até o final, quando parecem vestir uma batina para uma pregação totalmente dispensável. No final das contas, fica a sensação de indiferença: o Apocalipse já foi melhor, mas também já foi pior.

Comentários (1)

Cristian Oliveira Bruno | sexta-feira, 29 de Novembro de 2013 - 13:47

A fotografia do filme é linda. Tamém achei um tanto forçada a conotação religiosa, mas não chega a ser absurda. Hoje, as igrejas parecem dominar um grande fatia de sociedade \"não-pensante\" e vem aumentando seus \"seguidores\" à cada dia.

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