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Críticas

Cineplayers

'O Lutador' é a ótima jornada de um homem que não pode ser nada além do que é.

9,0

É preciso que seja dito em primeiro lugar: O Lutador não é um filme de luta. Trata-se apenas de uma história muito, mas muito bem contada, que pode ser facilmente saboreada por aqueles que não gostam de combate, não apreciam violência ou coisas assim – pois é uma história, acima de tudo, humana; e isso é universal.

Randy “The Ram” Robinson é um lutador que fez enorme sucesso nos anos 80. O que é apresentado ao público, no entanto, é sua versão 20 anos depois: uma caricatura do que já fora, um homem a quem restou muito pouco; pobre, quase sem amigos e distante da filha (que abandonou), tendo como único recurso participar de lutas em um circuito, digamos, menos nobre para conseguir faturar algum (mesmo assim, tem de trabalhar num supermercado para pagar o aluguel). Resignado nessa vidinha meia-boca, ele tem de enfrentar uma realidade ainda mais complicada quando um problema físico força a sua aposentadoria. Nesse momento, ele busca amparo em uma dançarina noturna (uma mulher mais velha que as colegas de profissão), que sugere a ele ir atrás da filha. Então, diria o clichê: enfrentar uma vida fora dos ringues é a verdadeira luta de Randy – e a mais difícil, pois o oponente é alguém que não se entrega fácil: ele mesmo.

Assim, Randy tem de encarar um mundo que não é feito de fãs e não se curva a seus pés. Nesse sentido, uma das melhores cenas é quando Aronofsky constrói um paralelo irônico apenas com o uso de som, comparando a entrada do lutador no supermercado ao seu ingresso no ringue.

E ironia é uma palavra importante em O Lutador: ela está sempre presente, sutil, na medida certa; não como um soco violento, mas como aquele golpe que vem de leve, aos poucos, e produz efeito pela continuidade. Essa ironia é construída nos detalhes (sim, há enorme atenção aos detalhes ao longo de toda a projeção, e isso enriquece o filme): o aparelho de surdez, a cena do videogame com o adolescente, os tipos com quem ele divide os combates. Isso sem falar do constante humor gerado pela autoindulgência do lutador – ao mostrar que tem consciência de sua condição, ele consegue ser divertido e sarcástico.

Mais um ponto importante do roteiro é fazer essa aproximação entre o personagem de Rourke (o lutador) e o de Tomei (a dançarina). De uma forma sutil, sem apelar para lugares-comuns, é construída essa simetria entre duas pessoas que não são mais o que eram – e passam a ver o quanto é difícil lidar com isso, ainda mais quando seu ganha-pão depende do corpo, que é falível. Isso é fundamental para que seja crível a relação entre os dois, e esse é um dos pontos fortes do argumento.

Para que o filme funcione tão bem, no entanto, não basta o texto acima da média: nenhum dos méritos seria capaz de sustentar a produção se não fosse a magnífica interpretação do protagonista. Mickey Rourke nocauteia o público com uma atuação extremamente premiável. É impressionante a forma como ele consegue passar a fragilidade desse homem sem referência que se torna o lutador sem seu palco. Cada olhar mistura uma fachada de autoconfiança e uma porção de medo e de resignação com o fracasso (ou com a vida fracassada que ele leva). Ao mesmo tempo, é uma figura cheia de carisma, que gera enorme empatia com o público mesmo quando comete deslizes – afinal, ele é alguém que só consegue ser o que é.

Ao seu lado, a talentosa Marisa Tomei não brilha tanto, mas faz o suficiente para tornar sua personagem vívida. Ah, e é preciso que seja dito: exibe uma forma e tanto para uma mulher de 44 anos – talvez ela merecesse o Oscar de melhor silhueta (que, definitivamente, não poderia ficar com Kate Winslet). Para fechar o elenco principal, Evan Rachel Wood, em sua pequena, mas fundamental participação, também mostra seu potencial dramático e garante uma das cenas mais intensas da película.

Em termos de direção, tem destaque a opção de Aronofsky por quase sempre posicionar sua câmera atrás do personagem (seja o lutador, seja a dançarina), de forma a seguir seus passos. É uma forma de fazer o público pegar carona e ir atrás de quem está na tela – ao mesmo tempo, também se trata de uma referência do esporte; e é preciso dizer que a construção desse ambiente tão peculiar das lutas profissionais é perfeita. Ainda em termos técnicos, a fotografia (ora iluminada, ora opaca) contribui para que haja uma distinção visual entre os dois mundos em que Randy circula.

Para concluir, o filme tem um final magnífico (e seria muito, mas muito fácil cometer um erro e pôr tudo a perder – essa ameaça chegar a bater na porta). A cena derradeira traz um teor simbólico cheio de ironia e inteligência; o fechamento perfeito para um filme que é o que tinha que ser.

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