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Críticas

Cineplayers

Um fascinante estudo de personagem, com grandes atuações, direção inspirada e roteiro exemplar.

9,0

Pela carreira que construiu para si nos anos noventa, Mickey Rourke acabou sendo considerado, por muitos, nada mais do que um galã que teve um breve período de sucesso na década anterior. A verdade, porém, é que, antes de praticamente abandonar a vida de ator para se dedicar ao boxe, Rourke demonstrou muito talento e potencial dramático em filmes como O Selvagem da Motocicleta e, principalmente, Coração Satânico. Portanto, ainda que seja uma surpresa ver o ator retornar ao primeiro time da indústria cinematográfica com O Lutador após tantos anos, não seria justo considerar a sua magnífica interpretação como uma tacada de sorte.

No filme, Rourke interpreta o lutador de luta-livre Randy “O Carneiro” Robinson. Famoso nos anos oitenta, quando multidões assistiam suas lutas, Randy ainda atua no ramo vinte anos depois, ainda que somente em apresentações amadoras para um público reduzido. Ao mesmo tempo, trabalha em um supermercado para completar sua renda, que nem sempre é suficiente para pagar o aluguel de seu trailer. Vivendo os resquícios da glória que um dia teve, Randy sofre um ataque cardíaco, o que o leva a buscar uma reaproximação com a filha e tentar dar início a um relacionamento com uma stripper, de modo a colocar sua vida de volta aos eixos.

O Lutador, de certa forma, também é o retorno de Darren Aronosfky ao estilo independente de filmar que primeiramente o destacou em Pi. Deixando de lado os delírios de Fonte da Vida e, principalmente, os artifícios visuais que ajudaram a tornar Réquiem por um Sonho uma experiência tão poderosa, o cineasta adota uma abordagem praticamente documental, naturalista, com a câmera na mão e utilização de atores não-profissionais em diversos momentos. Dessa forma, Aronofsky imerge o espectador no desolador cotidiano do protagonista, apresentando um homem alquebrado e preso uma vida dura e sem grandes perspectivas de um dia retomar o destaque que outrora teve.
 
Nesse sentido, a opção do diretor em constantemente posicionar sua câmera às costas do personagem enquanto este caminha funciona de maneira a reforçar o tom documental e tornar o público uma testemunha dessa jornada. Aronofsky ainda abre possíveis interpretações para os motivos pelo qual emprega o recurso: pode ser para representar o quanto Randy carrega em suas costas (o passado), pode ser uma metáfora para a vergonha sentida pelo personagem por ter jogador fora a sua vida, ou pode ser, simplesmente, uma escolha estética sem qualquer significado mais profundo. Seja lá o que o cineasta quis dizer, a escolha é eficiente por criar o tom certo para que a platéia “siga” o protagonista na trajetória.
 
Além disso, Aronofsky e o roteirista Robert Siegel demonstram maturidade narrativa ao entregarem exatamente o necessário para o espectador. Tanto em relação ao passado quanto no que tange os sentimentos dos personagens, O Lutador jamais torna-se excessivamente expositivo ou mastigado para o público, que acaba tendo que preencher as lacunas por si só (o que também fica claro na última e subjetiva cena). Por exemplo, o filme não explica como ou de que forma Randy acabou levando sua vida para a condição que se encontra, e o espectador percebe que isso não faz falta: O Lutador não é sobre como ele foi parar ali, mas de que maneira o protagonista começa a compreender seus limites e o seu lugar no mundo.
 
E a economia narrativa de Aronofsky e Siegel revela-se um acerto quando a platéia entende e conhece o personagem mesmo sem as tais explicações típicas do cinema americano. Seja quais foram elas, as escolhas erradas de Randy tornaram-no um homem solitário, que somente sente-se feliz quando revive as glórias do passado. Nesse sentido, são simbólicas e representativas duas cenas de O Lutador: a partida de videogame com um garoto, na qual Randy empolga-se ao “entrar no ringue” ainda no auge da carreira; e o seu sorriso ao chegar em casa após uma noitada, o que deve significar lembranças do tempo no qual era uma estrela e deveria ter mulheres aos seus pés – interessante também perceber como Aronosfky segue essa cena com um momento difícil entre Randy e sua filha, como se dissesse que somente quando se livrar de vez do passado o personagem poderá seguir com a vida.
 
No entanto, o aspecto mais tocante de O Lutador talvez seja o fato de que o próprio protagonista reconheça ser o responsável pela sua vida se encontrar de tal forma. Randy sabe que errou e, provavelmente pela primeira vez em sua existência, tenta reparar esses erros. Pela primeira vez, torna-se um lutador também fora dos ringues, disposto a revidar os golpes da vida, ainda que estes sejam cada vez mais duros e constantes – e, nesse raciocínio, o título do filme revela insuspeitada beleza e poesia. O Lutador é, em essência, a jornada de auto-conhecimento de um homem descobrindo realmente quem ele é. E talvez a dura lição aprendida por Randy é a de a redenção nem sempre é fácil, principalmente porque o papel a ser desempenhado por cada um é simplesmente aquele que se pode, e não o que se deseja (e a belíssima cena na qual o protagonista “escuta” a torcida enquanto caminha pelos corredores do supermercado é de cortar o coração).
 
Essa impecável construção de personagem realizada por Aronofsky e Siegel jamais funcionaria caso não fosse representada com talento e sensibilidade. Por isso, o tão propagado retorno de Mickey Rourke é mais do que justo. A caminhada de Randy “O Carneiro” é o papel da vida do ator. Com uma trajetória de vida semelhante a do protagonista (Rourke também viveu o estrelato nos anos oitenta para depois sumir no ostracismo), Rourke traz incrível verdade e sinceridade ao personagem. A impressão que fica é a de que ele deixa a técnica de lado para atuar com o coração; uma impressão, claro, que não condiz com a realidade, uma vez que a composição do personagem é detalhada e rica, como fica claro em pequenos detalhes, como o modo de mexer o cabelo. Além disso, Aronofsky, não tem pudores em explorar a face machucada e as cicatrizes do ator, mantendo a câmera sempre próxima do seu rosto, como forma de realçar os sofrimentos de Randy – e criando um forte paralelo com a vida real do astro.
 
No entanto, seria injusto afirmar que Mickey Rourke carrega o filme nas costas. Marisa Tomei está igualmente brilhante em O Lutador, construindo uma personagem com muitas semelhanças com Randy: tal qual o protagonista, sua Pam/Cassidy vive uma espécie de vida dupla, incorporando um personagem na boate e tentando tocar a sua vida da maneira que pode, enquanto percebe o avanço do tempo e os sacrifícios que ele pede. E Tomei, em incrível forma para sua idade, ilumina a tela, entregando uma interpretação repleta de carisma e sutileza, compondo Pam como uma mulher igualmente sofrida, com receio de se entregar a aventuras. Enquanto isso, a talentosa Evan Rachel Wood consegue, em seu pouco tempo em tela, uma atuação densa e, acima de tudo, importante por ser parte fundamental da jornada de descobrimento de Randy.
 
Como se não bastassem todas essas qualidades, O Lutador ainda funciona como uma interessante e, ao menos para a maioria dos brasileiros, inédita visão sobre os bastidores da indústria de luta-livre, fenômeno nos Estados Unidos, mas pouco popular no Brasil. Darren Aronofsky não deixa de lado o fato de se tratar de uma armação, mas apresenta o esporte como uma armação capaz de machucar e que exige muito dos atletas. Alguns dos melhores momentos de O Lutador saem dos momentos passados no ringue (a luta sanguinária contra o barbudo é o ponto alto) e no universo que o cerca, até por ajudarem a compreender melhor o personagem (reparem como Aronofsky insiste em mostrar Randy cumprimentando as pessoas, como para reforçar a reverência que elas têm pelo protagonista).
 
Talvez o único porém que pode ser dito sobre O Lutador é o fato de não oferecer grandes surpresas. No entanto, o filme não se propõe a isso. É, por outro lado, um retrato honesto e triste de uma pessoa comum que busca ser mais do que pode ser. Aronosfky e Siegel entregam, provavelmente, a mais complexa construção de um personagem desde que Paul Thomas Anderson apresentou seu Daniel Plainview de Sangue Negro. O cineasta jamais julga seu protagonista, e o olhar repleto de ternura que surge em relação a ele vem unicamente da sintonia entre Mickey Rourke e a platéia. Um sinal de que seu retorno, muito mais que sorte, tem uma razão primordial: talento.

Comentários (2)

luiz | sábado, 03 de Setembro de 2011 - 14:42

2° melhor atuação da decada passada, perdendo apenas para Daniel day lewis.

Cristian Oliveira Bruno | sexta-feira, 29 de Novembro de 2013 - 13:54

Mickey Rourke se entregou nesse papel que é o da sua vida, em todos os sentidos. Não havia outro para esse filme se não ele. Perfeito

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