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Críticas

Cineplayers

Más atuações, graves problemas estruturais e um eixo central esparso comprometem o resultado final.

4,0

Existem diversos fatores em O Menino da Porteira que sugerem que este deva ser um filme de gosto duvidoso, obra evitável por qualquer cinéfilo que leva a sétima arte com mais seriedade. O longa é protagonizado pelo cantor romântico-sertanejo Daniel, é uma refilmagem do original de 1976 (ainda que conte com o mesmo diretor), apresenta uma história baseada na letra da música caipira homônima e de quebra ainda tem um roteiro previsível envolto por uma trama que chega a ser irritante de tão clichê. Sem contar com o aspecto oportunista que ronda a produção, uma vez que parece ser uma tentativa de pegar carona com o megassucesso de 2 Filhos de Francisco, além de usufruir do bom momento comercial em que vive a cultura sertaneja no Brasil, com pessoas de todas as regiões (mesmo nas grandes metrópoles), de todas as idades e classes sociais (incluindo aí as mais altas) entrando na onda e na “modinha” country.

Mas enfim, como todo bom cinéfilo deve saber, estabelecer pré-conceitos contra filmes antes de conferi-los tende a ser bobagem, e ainda que as informações indiquem o contrário, um filme com os ingredientes sugeridos acima poderia sim, resultar numa obra de qualidade cinematográfica (já dizia o escritor James Joyce que o grande mérito do artista era a capacidade de transformar algo banal em grande arte, e quantos grandes filmes você já deve ter assistido que são exatamente assim?). O fato, por exemplo, do filme ser estrelado por um cantor ou estrela da música popular (o original contava com Sérgio Reis) não desmerece de imediato o longa, ainda que o cinema brasileiro tenha vivenciado experiências terríveis nesse sentido, como no abominável Cinderela Baiana,  estrelado por Carla Perez. No cinema norte-americano sempre foi e continua sendo comum este intercâmbio, desde os tempos de Bing Crosby, Benny Goodman, Frank Sinatra (que inclusive ganhou o Oscar), passando por Elvis Presley (e sua extensa filmografia), Mick Jagger, Barbra Streisand, até os dias atuais com Britney Spears (o que talvez não seja um bom exemplo), Norah Jones e Beyoncé, mencionando apenas alguns nomes.

Deixando as pré-impressões de lado, vamos ao filme.  A trama, em suma, consiste na experiência do vaqueiro Diogo no vilarejo de Rio Bonito, interior de São Paulo, na década de 50. Diogo (Daniel) vive de transportar gado em comitivas, e está para levar uma boiada à fazenda Ouro Fino, propriedade do ganancioso vilão Major Batista (José de Abreu, na única boa atuação do filme), que monopoliza o comércio de bovinos na região. Chegando ao seu destino, Diogo conhece o menino Rodrigo, que sonha em ser peão, este que é filho de Otacílio Mendes, um dos agitadores que, ao lado dos demais moradores, planejam fazer justiça e tirar as terras do domínio do malvado Major. Porém eis que o peão Diogo se apaixona logo pela bela filha do Major, Juliana (Vanessa Giácomo), e tem início ali uma história de amor.

Mais problemático do que a trivialidade da trama, porém, é o modo como o roteiro foi estruturado. Embora conte com apenas 90 minutos, o filme parece demasiadamente longo para uma história com um eixo central mal amarrado e sem ritmo, que além de não conseguir manter o espectador atento e interessado para o desfecho da história, é constantemente interrompido por núcleos paralelos absolutamente dispensáveis, que mais parecem preencher com linguiça o tempo de duração do longa. Temos a história central, que envolve a disputa pelo controle do comércio entre Diogo e moradores contra Major, mas paralelamente há a história de amor, grosseiramente mal contada e pouco envolvente. E como se não bastasse, o filme ainda é repleto de situações que não dizem respeito nenhum ao restante do conjunto, estando absolutamente perdidas e sem função na trama.  Como acontece com a personagem Filoca, interpretada por Rosi Campos, que embora seja uma grande atriz, compõe um personagem caipira absolutamente inverossímil, entre quase todos os outros igualmente forçados no elenco - aliás, nenhum personagem deste longa conta com qualquer profundidade, são todos absolutamente caricatos e estereotipados. Ainda no meio dessa estrutura telenovelesca, há também, perdido, o tal menino que dá título ao filme. Diante dessa trama empacada em que nada acontece, onde tudo está na retranca e nada parece ter poder para atrair a atenção do espectador, fica a certeza de que o maior erro de O Menino da Porteira é sua falta de coesão narrativa. Tudo fica mal resolvido, a começar pela questão da paternidade entre Major Batista e sua filha Juliana. Nenhuma ação se completa, a edição está mais a serviço de embaralhar um filme sem caldo, sem um eixo central consistente, do que salvar a projeção da dispersão gratuita.

Mas nem tudo é ruim. O filme de um modo geral é bem fotografado, conta inegavelmente com belas tomadas de paisagens rurais, imagens da boiada correndo no pasto (onde um gado bem tratado foi nitidamente escolhido para compor uma paisagem que mescla animais rubros, pardos e brancos), contando ainda com ótimos planos gerais de alvoradas e crepúsculos, estes tão vitais para a vida no ambiente rural quanto para um filme que é rodado em paisagens naturais – e nestes momentos do filme fica difícil não ser remetido aos belos planos de David Lean, que talvez tenham inspirado o diretor Jeremias Moreira, com filmes tais como Lawrence da Arábia e Doutor Jivago.

Falando em referências, pode-se inclusive estabelecer um paralelo (sendo, é claro, muito generoso) entre este filme O Menino da Porteira e o faroste às avessas do diretor “maldito” Nicholas Ray chamado Johnny Guitar. No longa norte-americano de 1954, o personagem central é um forasteiro que chega ao vilarejo, e sua presença irá desencadear revoltas, trazer à tona verdades que estavam para serem ditas e mudanças permanentes na vida local. Assim como o personagem de Daniel está sempre munido de sua viola caipira, o protagonista de Johnny Guitar está sempre com seu violão em punho, pronto para tocar uma “moda” e levar todos à catarse. Por um momento, também é possível relacionar O Menino da Porteira com os filmes de Elvis Presley. Os filmes do rei do rock, invariavelmente, apresentavam uma história fraquíssima, pouco envolvente, que funcionavam mais como um pretexto para que o rei pudesse, de tempos em tempos, fazer seu número musical, dar o seu show particular. Assim acontece com Daniel, que pontua o longa com boas apresentações, fazendo soar sua viola muito bem, sendo este o aspecto mais contagiante do filme.

Ainda sobre isso, a sequência mais interessante do filme é, sem dúvida, a que acontece quando Daniel toca e canta a empolgante música “Disparada”, composição de Geraldo Vandré que ganhou o Festival da Canção de 1966 com a interpretação de Jair Rodrigues (para quem não lembra, é aquela em que se canta “na boiada já fui boi, mas um dia me montei..”). Possivelmente parafraseando a tripla temporalidade da sequência da ópera em O Poderoso Chefão 3, em montagem paralela, enquanto Daniel interpreta calorosamente a canção, o grupo de moradores discute em uma reunião secreta como tomar o controle do comércio de gado da região, enquanto a casa de um dos moradores está sendo incendiada pelos capangas do vilão Major  Batista. Curiosidade: o filme se passa exatamente no ano de 1954, mas a canção só veio a ser conhecida no Festival da Canção de 1966. Licença poética ou pura distração dos realizadores?

Entre mortos e feridos, pode-se concluir que O Menino da Porteira ficou certamente aquém do que poderia ter sido, e o resultado peca em vários sentidos. Contudo, deve agradar em cheio aos simpatizantes da cultura rural, ao público que cresceu nesse meio e principalmente aos nostálgicos de plantão, sejam pessoas da terceira idade ou não, que se deliciarão ao ouvirem certos maneirismos caipiras datados, e ao ver merchandisings dignos da publicidade da época e da região interiorana em porteiras e fachadas das vendinhas e farmácias. Prepare o seu coração...

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