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Críticas

Cineplayers

A Forma da Indignação.

9,0

“Esses filmes não foram feitos juntos; nem com a idéia de mostrá-los juntos. Mas quando eles vieram juntos nós sentimos que eles tinham uma atitude em comum. Implícito nessa atitude está a crença na liberdade, na importância das pessoas e o significado de todo dia.

Como cineastas nós acreditamos que:
Nenhum filme pode ser muito pessoal.
A imagem fala. Som amplifica e comenta.
Tamanho é irrelevante. Perfeição não é um objetivo.
Uma atitude significa um estilo. Um estilo significa uma atitude.”

- Manifesto do Free Cinema, por Lindsay Anderson

Um dos três filmes da “santíssima trindade” do novo cinema britânico, ao lado de Tudo Começou no Sábado (Saturday Night and Sunday Morning, 1960), de Karel Reisz, e A Solidão de Uma Corrida Sem Fim (The Loneliness of The Long Distance Runner, 1962), a obra de Lindsay Anderson é outra obra-prima da geração de realizadores que fundiu seus inventivos e anti-narrativos documentários, aproximados dos cinemas direto e verité e Jean Vigo, com a noção do “cinema de autor” da nouvelle vague e o “realismo de pia de cozinha” do teatro, de dramaturgos como Shelagh Delaney e John Osborne em peças como A Taste of Honey e Look Back In Anger.

Ícone do cinema inglês, Richard Harris consagrou-se pela primeira vez na história de ascensão econômica e queda moral de Frank Machin, um jogador de rúgbi de origem humilde, que devido à garra e brutalidade que tem nos jogos, consegue um destaque cada vez maior no esporte e na sociedade, tornando-se pouco a pouco um pária: cada vez mais distante da origem humilde de onde veio, jamais se aproxima de foto à aristocracia, apenas paparicado na maior parte das vezes como um mascote exótico.  Em um ciclo retroativo, quanto mais frustrado Frank fica, mais agressivo e atordoado em sua determinação fica.

A sua derrota fora dos campos é representada pela senhoria da casa de onde mora e se recusa a sair, Margaret Hammond, por quem nutre atração. Margaret, uma recente viúva mãe de dois filhos, ainda está chocada tanto pela morte do marido no trabalho quanto o fato da firma não a compensá-la, considerando a morte do marido um suicídio. Frank, rústico que só, é incapaz de entender que ela não o considera atraente - além de considerá-lo grosseiro e ignorante - e desenvolve uma violenta relação com a mesma, da discussão aos gritos a sexo forçado,  apesar de outras vezes tratá-la docilmente e tentar ser a figura paterna que os filhos perderam.

Adaptado da novela de David Storey – dramaturgo, roteirista, novelista e jogador de rúgbi aposentado – O Pranto de um Ídolo (This Sporting Life, 1963) é um filme intenso e ambíguo, onde qualquer plot ou conflito externo é jogado fora para concentrar no diálogo externo e confuso do personagem, um homem confuso que percebe o mundo como agressivo para consigo e devolve da mesma forma, cada vez mais irado e violento dentro e fora dos campos. O personagem, ao mesmo tempo dócil e abusivo, tão sucedido quanto fracassado, agarra a única oportunidade que tem de subir da vida com unhas e dentes, e assume isso como padrão para os outros. Filho de uma cultura opressora e elitista, Frank não sabe lá muito bem como agir com cautela: esbanja-se, abusa, recusa um “não”, parece não perceber o misto de desprezo e paparicação de seus empresários.

Como os filmes de Karel e Tony Richardson e outros como O Mundo Fabuloso de Billy Liar (Bily Liar, 1963), e como já ocorria na oposição entre fábricas e pubs nos documentários do Free Cinema,  o trabalho operário exaustivo e perigoso erguido sob a égide Fordista despersonalizava o indivíduo, tornando-o número, estatística, deixando-o embrutecido e alienado. Junto com o menino-problema de A Solidão de Uma Corrida Sem Fim e o torneiro mecânico hedonista e irresponsável de Tudo Começou no Sábado, encontra-se um misto de revolta cansado com o establishment, mas sem saber como quebrar tais paradigmas – são ingleses típicos da classe operária, com elementos até conservadores em suas personalidades, mas de caráter tanto caótico e anarquista, pouco desejoso de assumir “seu lugar” na grande roda, de atender ao sistema onde foram inseridos: sempre estão correndo, discutindo, gritando, fugindo, vagando sem rumo certo.

Assim é a câmera de Lindsay, que funde a tendêcia quase documental iniciada no neo-realismo  - agora as locações naturais – as casas, as ruas, as pontes e os campos que falam – com um lirismo expressivo que evoca imagens brutais. A referência de Vigo seria ampliada em Se... (If..., 1968), onde o tom sociopolítico de revolta seria incrementado junto com uma narrativa mais formal ainda. Não que aqui Lindsay careça de ousadia: o grande mérito dessa obra-prima debut de ficção do diretor é conseguir extrair pura poesia visual de interiores sujos e lúgubres, ruas cinzas e esfumaçadas, das metáforas que são captadas no próprio dispositivo: lama, sangue, suor e dentes quebrados combinam com cortes secos, com cenas sem rumo e desenho psicológico óbvio, câmeras trepidantes e pura criação imagética que confunde o espectador, que por vezes entre um grande diálogo, cria-se sequências de ação que não constituem drama, mas antes uma construção de impressões perturbadora que intentam criar sensação de confusão, angústia e dor em um filme tão movido pela impulsão quanto seu personagem.

É perceptível a identificação dos diretores do British New Wave, apelidados de “Angry Young Men” - jovens revoltados – com seus protagonistas. Pessoas  de personalidade fortes e ambíguas, que pedem licença para tramas de gênero e fazem suas impulsões e infernos pessoais moverem as histórias para a frente. O preto-e-branco demarcado e carregado transforma seus personagens: dóceis quando iluminados, confusos e à beira do colapso nos cinzas, violentos, cruéis e desesperados quando mergulhados em escuridão. Mais de uma vez estão desarrumados, suados e sujos, ou então, como essa é uma história de ilusória ascensão, em roupas que não lhes cabem, que os deixam desconfortáveis, sem saberem como agir. Era o espírito da década de sessenta: capitalismo contra comunismo, jovens contra velhos, revolta contra conformismo. Distantes das provocações de discussões intelectuais, aproximavam-se em temas e protagonistas que eram regionais para serem universais. Os protagonistsa de O Pranto de um Ídolo estão abandonados, sem pais, obedecendo uma lógica, tentando driblar essa lógica, tentando sobreviver.

Os finais de semana como única válvula de escape, as corridas longas e solitárias, essas vidas esportivas que prometem mas ao invés de transformar o protagonista em alguém o transformam em outro mascote desumanizado e despersonalizado. O descontantemento contra noções como aristocracia e elite foram as matérias-primas de um movimento não só tematicamente mas também esteticamente aproximado: a busca por uma narrativa livre, por imagens destacadas dentro do conjunto, a associação livre, o trabalho atmosférico mergulhados tanto no tédio inerte quanto na visceralidade intensa: O Pranto de um Ídolo chama nossos olhares, oferece grandes e fortes imagens, quer concentrar toda a revolta de uma geração que se sente injustiçada em eficientes momentos-síntese que são a válvula da movimentação frenética e de rumo livre das câmeras que querem capturar uma nova Inglaterra, com novos indivíduos, com novos anseios, dispostos a lutar e se vingar; são filmes exaustivos em sua intensidade emocional, onde o tom dramatúrgico trabalhado funde comentários sociais, relações pessoais desgastadas e conflitos internos são suficientes para deixar o espectador devastado.

A partir do Free Cinema/British New Wave, a Inglaterra apontava a câmera para indivíduos que jamais seriam filmados em um primeiro momento pela grande indústria em filmes malcriados e desobedientes que constituíram um dos períodos históricos-regionais mais singulares da história do cinema.

Comentários (10)

Francisco Bandeira | segunda-feira, 18 de Novembro de 2013 - 18:47

Considero obrigatório também Trágico Amanhecer, justamente pela última imagem do filme (não revelarei, claro), que é simplesmente espetacular e me fez ficar muito fascinado por essa OP!

Francisco Bandeira | segunda-feira, 18 de Novembro de 2013 - 19:16

Barbara citou New Wave britânica ganhando merecido destaque, mas ja vem acontecendo isso faz um tempo aqui no CP! Eu me fascino por ambos (New Wave e Nouvelle Vague). Filmes da British New Wave mto lembrados são: \"Almas em Leilão\", \"Um Gosto de Mel\" e \"Tudo Começou no Sábado\", este último tendo uma belíssima crítica do Mion aqui no site! Um dos meus favoritos do BNW (se não me falhe a memória) é \"Ainda Resta uma Esperança\", do Schlesinger. Enfim, é cinema de altíssima qualidade e todos nós gostamos muito! HAHAHAHAHA

Augusto Barbosa | segunda-feira, 18 de Novembro de 2013 - 20:45

Putz, só fui descobrir essa new wave quando o Brum fez aquele 7+. Estou na filmografia do Anderson agora, falta ver Baleias de Agosto, depois disso a meta é Tony Richardson e John Schlesinger em seguida.

E sobre essas \"novas ondas\", pra mim a Nuberu Bagu é insuperável (Imamura, Suzuki, Yoshida, Shinoda, só fera).

Francisco Bandeira | segunda-feira, 18 de Novembro de 2013 - 23:47

Augusto, pode cair de cabeça na New Wave Britânica, pode não ter o mesmo reconhecimento da Nouvelle Vague, mas não fica devendo nada em filmes!

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