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Críticas

Cineplayers

A imersão sem volta de Damien Chazelle.

8,0
Damien Chazelle teve como primeiro destaque da carreira o filme sobre jazz Whiplash - Em Busca da Perfeição (2014), baseado em um curta próprio. Dois anos depois, com o musical La La Land - Cantando Estações, se tornou o mais jovem vencedor do Oscar de Melhor Direção aos 32 anos. Se tornou conhecido por uma estética ambiciosa, com uma câmera intimista evocando imagens poderosas e composições muito bem pensadas, o que coube tanto em um filme sobre um garoto que tenta aprender a tocar jazz com um professor exigente quanto um casal que choca o sonhador romance dos musicais com a frustração da vida real. O Primeiro Homem talvez seja seu filme mais bem resolvido até agora.

O filme, em síntese, é a biografia do astronauta Neil Armstrong e as dificuldades enfrentadas para a NASA e a humanidade alcançarem a lua. Mas do jeito que Chazelle enxerga, para variar, é mais do que isso. Já no início do filme, Neil e sua esposa Janet perdem sua filha Karen para o câncer, fato que deixa o já introvertido astronauta ainda mais distante das formalidades terrenas e cada vez mais mergulhado em seu objetivo.

O que mais chama a atenção no novo filme de Chazelle é como consegue ser sutil e exaustivo ao mesmo tempo. Ao relatar como o casal move para a frente com um novo filho, com a esposa agindo como testemunha e porta-voz enquanto o marido se envolve em missões quase suicidas com riscos cada vez maiores, o filme é minimalista, sem música com poucos diálogos, poucos cortes, grandes silêncios e enquadramentos frequentemente encontrando seus personagens presos em molduras de porta e janelas, em pouca luz, sombras de uma família típica apenas na superfície. Mesmo as brigas são entremeadas por falas interrompidas, atividades cotidianas e olhares pesados e contemplativos.

Ao mesmo tempo, é um filme de mão tão pesada quando seus protagonistas tentam ir para o espaço que não é de espantar se alguns se sentirem enjoados, tontos ou desnorteados. Em poucos momentos há a beleza de cruzar o espaço a bordo de um foguete: Chazelle traduz o inferno particular do personagem encontrando-o em cabines claustrofóbicas, onde o menor erro é uma sentença de morte. Tudo que é possível dentro desses espaços é um balé de closes e planos detalhes subexpostos, onde a escuridão reina e a câmera balança infernalmente. Com o som ensurdecedor, insistente e sem preocupação de ser irritante, a imersão é profunda e não necessariamente agradável.

Esse é um filme sobre a humanidade indo ao espaço, o que Chazelle entendeu como justamente não fazer uma biografia chapa-branca, exaltando o espírito norte-americano que deu o passo adiante na corrida espacial. Um homem pisou na lua - mas que homem? Um grande exemplo de ser humano, sem falhas ou fantasmas? Ou uma persona individual, com suas experiências, seus traumas, desejos e dores? Dessa forma, a câmera nos prende praticamente sozinhos com seus personagens - e só nos larga no final.

Com certa sabedoria, o diretor aproveita a pouca expressão de Ryan Gosling para construir um personagem estóico que prefere ficar sozinho com seus problemas, esquecendo a morte da filha se tornando um profissional exemplar, ousado e de sangue frio enquanto a Janet de Claire Foy, inicialmente abatida, passa progressivamente a mostrar energia invejável, sem medo de ser desagradável em meio a um mundo de homens impressionado consigo mesmos e, com o perdão do trocadilho, os tirando do mundo da lua. A personagem serve como a conexão concreta com o outro, a lembrança das relações humanas, e seu destaque cada vez maior dentro da trama arranca o filme do terreno do mero “filme científico” e nos puxa para o terreno humano, onde mais do que chegar a algum lugar importa como chegaremos. Com isso, mesmo sendo uma personagem de certa forma periférica, jamais soa desnecessária.

Todo o filme pode ser lido, com todos os seus testes espaciais, seus fracassos, suas insistências, discussões e brigas, como uma grande pavimentação para o seu ato final, que é a chegada à lua prometida pelo título e enredo escolhido. É um momento em que o filme choca a composição imersiva com a plástica, focando nos emocionalmente sacrificantes mínimos detalhes que separam viver ou morrer com grandes planos abertos, carregados da música eletrônica de Justin Hurwitz, em sua segunda parceria com Chazelle após La La Land, apelando para a estética retrô das ficção científicas à época que reforçam o ineditismo e a estranheza do acontecimento: nossa civilização indo para o seu ponto mais distante, indo onde gerações anteriores apenas sonharam. 

Também é o momento em que o roteiro une o drama íntimo e sutil do filme à sua perseguição científica, pois pode ser a última missão da vida dos personagens. Nessa hora, a cinematografia se esbalda: estar no espaço é lindo, emocionante, glorioso. Não se olha com exultação e grandes sonorizações do acontecimento, mas com uma contemplação quase estática, parcimoniosa e que se demora cada momento no deleite. Pois o diretor sabe que a ambição também mora em saber quando e como usar mais ou menos recursos - e como podem assim gerar resultados poderosos.

O filme pode não ser perfeito - umas inserções de flashbacks genéricas, alguns assuntos interessantes abordados de forma superficial, como os protestos sociais contra o gasto de milhões no programa espacial, mas como um todo, o diretor novamente impressiona. O Primeiro Homem lembra o diretor dos outros filmes, mas é definitivamente mais maduro, menos afetado com maneirismos e com algumas sequências tão preocupadas com a imersão diegética que tiram o fôlego a ponto de cansar - e isso é um elogio. Provável competidor do Oscar, merece as indicações que conseguir, pois apresenta uma visão extremamente pessoal e nada burocrática ou conformista do tema em questão, mergulhando sem volta no que pretende retratar. E isso, nos dias de hoje, vindo da indústria de onde veio, é um tanto raro - quase um privilégio - ver projetos assim conseguirem não apenas serem produzidos mas também um destaque tão grande. Com sua cabeça voltada para jazz, musicais e homens no espaço e as almas por trás deles, Chazelle é a injeção de fôlego no filme industrial atual.

Comentários (5)

Daniel Borges | sexta-feira, 12 de Outubro de 2018 - 22:27

filmão pra ver no cinema.

Walter Prado | sábado, 13 de Outubro de 2018 - 12:08

Não sou fã de Chazelle como muitos por aí não, então não me empolgo com este de antemão não...

Archie | quinta-feira, 25 de Outubro de 2018 - 16:01

Particularmente eu não me importei com a câmera tremida no espaço. Me surpreendeu, mas acho que agregou valor a obra e trouxe um bom nível de imersão ao filme. O que me incomodou foi o excesso de planos fechados. Ainda assim foi um filme que conseguiu me surpreender quando não tinha expectativas altas já que na minha opinião o conteúdo da história em si não oferecia muito potencial cinematográfico.

Bela crítica Bernardo!

Archie | quinta-feira, 25 de Outubro de 2018 - 16:03

Ah, e a Claire Foy tá incrível!

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