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Críticas

Cineplayers

Nicholas Ray prova ser um autor mesmo contando a maior história de todos os tempos.

6,5

Após o seu surgimento nos anos 1920 e consolidação nos anos 1930, os estúdios de Hollywood chegavam à década de 1950 diante de seu inimigo mais temido: a televisão. De uma para outra, milhares de potenciais espectadores passaram a ter a opção de, em vez de se deslocar ao cinema mais próximo, ver os filmes no conforto de suas casas. Em resposta, os estúdios sabiam que teriam que oferecer ao seu público algo mais espetacular do que aquilo que era exibido por aquela estranha caixa quadrada de sons e luzes. A solução encontrada veio em duas palavras: épicos religiosos. Se antes o gênero sempre era visto com desconfiança, agora ele parecia o terreno perfeito para que o cinema explorasse seus melhores atributos e pontuasse suas diferenças em relação à televisão: grandes cenários, cenas de ação mais elaboradas, maior violência e, claro, uma leve pitada de sexo.

Os estúdios entraram de cabeça nessa estratégia. Em 1951, enquanto a MGM lançava Quo Vadis, a Fox produzia David e Betsabá. Em 1953, a mesma MGM realizou O Manto Sagrado (hoje lembrado mais por ser o primeiro filme a usar formato cinemascope), e no ano seguinte, sua continuação, Demetrius e os Gladiadores. Para não ficar para trás, em 1954 a Warner lançou O Cálice Sagrado. Em 1956, Cecil B. DeMille e a Paramount resolveram refilmar Os Dez Mandamentos. O ápice dessa onda chegou em 1959, com o lançamento de Ben-Hur pela MGM.

Apesar de não ter qualquer pudor em explorar esse filão cinematográfico, quase sempre desrespeitando a verdade histórica dos fatos, Hollywood nunca soube muito bem como tratar a figura de Jesus Cristo. Talvez com receio de melindrar os católicos fervorosos (que, afinal de contas, também pagavam ingressos), os produtores pareciam ter como regra básica a abordagem sempre respeitosa, quase reverencial, do personagem. Em termos cinematográficos, isso significava que o diretor deveria filmar Jesus pelas costas ou através de sombras.

Em 1961, o produtor Samuel Bronston, russo de nascimento e americano de criação, resolveu entrar na jogada. Ele foi o primeiro a perceber que, apesar do enorme apelo do público pelos épicos religiosos, desde 1927, quando Cecil B. DeMille (sempre ele) lançara o clássico mudo Rei dos Reis, nenhum filme americano mostrara o rosto de Jesus Cristo na tela. Bronston foi prático: a hora de refilmar Rei dos Reis havia chegado.

A primeira medida que ele adotou foi montar uma estrutura de filmagem no interior da Espanha, cuja paisagens desérticas reproduziriam à perfeição os cenários necessários para a produção. Em seguida, chamou Philip Yordan, roteirista respeitado e que já ganhara um Oscar pelo faroeste A Lança Partida. Com o roteiro encaminhado, Bronston foi atrás de um diretor. O nome escolhido foi Nicholas Ray.

Àquela altura, Ray já construíra a fama de diretor problema. Apesar do enorme talento que demonstrara em suas primeiras produções e do sucesso de público que conhecera com Juventude Transviada, lançado apenas quatro anos antes, Ray estava cada vez mais envolvido com jogos, mulheres e bebidas (não necessariamente nessa ordem). Para piorar, seus últimos cinco longas-metragens (Sangue Ardente, Delírio de Loucura, Amargo Triunfo, A Bela do Bas-Fond e Sangue Sobre a Neve) produziram resultados pífios de bilheteria. O diretor já não conseguia realizar seus próprios projetos, a não ser que aparecesse alguém com muito dinheiro disposto a bancar o risco. Samuel Bronston resolveu ser essa pessoa.

Nicholas Ray se viu diante de vários desafios: o primeiro deles estava ligado à própria essência do filme: afinal de contas, como retratar a - episódica - vida de Jesus Cristo, figura central de toda a cultura ocidental? Em segundo lugar, havia o fato de que muitos de seus primeiros trabalhos eram assumidamente independentes e de baixo orçamento. Pela primeira vez em sua carreira, Ray era chamado a dirigir uma produção em escala épica. Sem muito poder de negociação, o diretor encarou o projeto.

Ao dizer sim, Ray talvez nem tivesse se dado conta que a figura de Jesus Cristo era extremamente coerente com as demais personagens que permearam sua longa filmografia. Tal e qual os protagonistas de Cinzas que Queimam, Paixão de Bravo e  Juventude Transviada, Jesus também não deixava de ser um iconoclasta, uma pessoa inconformada e solitária, e que lutava contra uma sensação de inadequação com a ordem estabelecida. 

A primeira preocupação de Ray e do roteirista Philip Yordan (ambos repetindo a parceria de Johnny Guitar) foi contextualizar a pessoa de Jesus dentro do cenário político da época. Assim, ao contrário das convenções da época, Rei dos Reis inicia sua narrativa 63 anos antes do nascimento de Jesus. Por meio de um prólogo, narrado de forma seca e jornalística por Orson Welles, vemos a tomada da Judéia pelo exército romano do General Pompeu e a nomeação do Rei Herodes como uma espécie de interventor local. Inicia-se a perseguição ao povo judeu, que resiste com a crença de que a salvação está na vinda do Messias.

Os anos passam. O casal José e Maria se desloca de Nazaré, na Galiléia, para Belém, na Judéia. Lá nasce Jesus. Acompanhamos a visita dos três reis Magos (Baltazar, Melchior e Gaspar) ao estábulo em que a criança dorme. Os profetas avisam ao Rei Herodes que, de acordo com as escrituras, o Messias teria nascido em Belém. Herodes decide matar todos os recém-nascidos naquela cidade. No entanto, o menino Jesus já tinha deixado a cidade em direção ao Egito, onde passaria boa parte  da sua infância. O tempo passa e os conflitos entre judeus e romanos se intensificam. De um lado, Barrabás lidera uma espécie de grupo guerrilheiro cujo objetivo é tomar o poder por meio da força. De outro, às margens do Rio Jordão, João Batista profetiza a vinda do Messias. Enquanto isso, no alto clero, Roma envia à Judéia o General Pilatus enquanto que Herodes Antipas mata o Rei Herodes, seu pai, e assume o poder.

O início de Rei dos Reis se dedica exclusivamente à apresentação desta ambientação. Com isso, o filme ganha pontos num quesito geralmente negligenciado pelas outras obras do gênero: o bom desenvolvimento dos personagens. Antes mesmo da entrada de Jesus na trama – o que só vai ocorrer aos 34 minutos de projeção – o público tem uma noção bastante adequada da motivação de cada um deles e das intrigas que ocorrem dentro e fora dos palácios. Ainda que a história e o destino dos personagens seja por demais conhecido, do ponto de vista do interesse da platéia esse prólogo faz toda da diferença.

Ao longo de Reis dos Reis, Jesus será visto como um elemento a mais dentro deste conflito entre romanos e judeus. Ele representa uma ameaça aos donos do poder, tanto quanto Barrabás. No fundo, ambos carregam a mesma proposta, só que a veiculam de forma diferente. O primeiro, pela palavra; o segundo, pelas armas. No entanto, os romanos sabem que o convencimento e a persuasão de Jesus parecem ser muito mais devastadoras. Não é à toa, portanto, que, ao final, eles não se importam muito em soltar Barrabás em troca da prisão de Jesus. Nesse sentido, Rei dos Reis se aproxima muito mais de um filme político do que religioso.

Do ponto de vista cinematográfico, Rei dos Reis tem vários achados visuais. Como de costume, Nicholas Ray se mostra um mestre no uso do cinemascope.  A tela larga lhe dá condições de dispor seus atores dentro do quadro de uma forma que funciona tanto plástica quanto dramaticamente. Em várias passagens, o diretor filma determinada personagem em primeiro plano enquanto transmite outras informações no plano do fundo, ambos em foco. Veja, por exemplo, a bela cena em que o Rei Herodes Antipas acata o pedido que lhe foi feito por Salomé, sua enteada: num único plano, Ray enquadra o rosto do rei – em primeiro plano – e o corpo do guarda – em segundo – que aguarda a autorização para o cumprimento da ordem. Outro belo momento é a morte do Rei Herodes, que se inicia com o personagem tentando se agarrar nos véus brancos e se encerra com a câmera situada acima do trono, no qual já se vê a figura do seu filho.

As sequências do calvário e da crucificação são discretas e curtas, mas Ray dá um toque de originalidade ao posicionar suas lentes acima da cruz quando esta é erguida. Outro aspecto que difere Reis dos Reis dos demais filmes sobre a história de Jesus é que algumas passagens famosas dos Evangelhos não são encenadas, mas apenas mencionadas. Incluem-se aí o milagre da multiplicação dos pães, o caminhar de Jesus sobre as águas, a ressurreição de Lázaro e a decisão de Pilatus de lavar as mãos. A melhor cena do filme permanece sendo o Sermão da Montanha, transformada por Ray numa espécie de comício político, um debate a céu aberto entre Jesus (que surge de vermelho) e seus devotos.

O elenco de Rei dos Reis não é dos mais famosos. Ironicamente, esse dado contribui favoravelmente para a construção dos personagens, já que o público não se deixa distrair pela figura de um rosto conhecido. Como Jesus, Ray optou pelo ator Jeffrey Hunter, com quem já trabalhara em Quem Foi Jesse James?. Apesar de nos últimos cinco anos ter desempenhado importantes personagens para três filmes de John Ford (Rastros de Ódio, O Último Hurrah e Audazes e Malditos), Hunter não conseguia se livrar da fama de galã e do seu rosto de bebê. A oportunidade de interpretar ninguém mais do que Jesus era a chance da guinada. Sua atuação é correta, naquela linha reverencial a que estamos acostumados a ver, mas longe de comprometer o resultado final. Ao contrário do que o ator pretendia, Rei dos Reis não o transformou num astro. A partir dali, ele passou a formar uma carreira mais ligada à televisão. Em 1966, integrou a série clássica Jornada nas Estrelas, no papel do Capitão Christopher Pike. Em 1969, aos 43 anos, morreu por conseqüências de um derrame.

Os demais personagens foram vividos por atores relativamente desconhecidos. Hurd Hatfield (cuja carreira não engrenou após o sucesso inicial de O Retrato de Dorian Gray) interpreta Pilatus; Frank Thring (que interpretara Pilatus em Ben-Hur na versão de 1959) vive o Rei Herodes Antipas; Brigid Bazlen (uma espécie de irmã mais nova de Elizabeth Taylor) dança como Salomé; e um novinho Rip Torn encarna Judas Iscariotis. Robert Ryan, talvez o rosto mais familiar dentre os atores, faz João Batista.

Na parte técnica, não há como deixar de fazer menção à trilha composta por Miklós Rózsa, uma das mais belas de seu repertório e que, estranhamente, não foi indicada ao Oscar daquele ano.

No final das contas, Rei dos Reis pode até não figurar entre os melhores filmes de Nicholas Ray, mas são inegáveis os seus vários belos momentos cinematográficos Eles revelam que, apesar os problemas de saúde do diretor, da interferência do produtor Bronston, e das próprias limitações da história, havia ali a mão de um verdadeiro autor.

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