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Críticas

Cineplayers

Pessoas como ondas.

8,0

Se nos entregarmos à vontade inicial em desistir de O Segredo das Águas durante seus primeiros minutos, seriamos justificados pelo ritmo lento que Naomi Kawase emprega ao começar sua história cheia de incógnitas. Persistindo, porém, estaremos diante de um coming of age sensível, tocante, contemplativo, deflagrado pela descoberta de um cadáver flutuando nas margens do mar. Ao ver o corpo de um homem sem vida, o adolescente Kaito corre para longe, sendo seguido de perto por sua amiga Kyoko, que procura entender a relação do colega para com o cadáver. Trata-se de uma desculpa, um ponto específico com impacto suficiente para que a cineasta inicie seu conto sobre dois adolescentes que florescem para a vida adulta.

Tematicamente, O Segredo das Águas não se destaca do que geralmente são os filmes coming of age. Os adolescentes do filme despertam para a vida adulta através da vivência do amor, da morte, do abandono, das descobertas. Os maneirismos utilizados por Kawase para tecer a sua história, no entanto, são suficientemente potentes para darem força extra a uma história que, à princípio, fora muitas vezes contada.

Praticamente todas as cenas são intercaladas com vistas para o mar, cenas de árvores, estradas, casas, pessoas desconhecidas, compondo, peça por peça, a estrutura ambiental daquele lugar que cerca os personagens principais, não apenas para dar mais força aos conflitos que esses personagens enfrentam, mas para transformar a ilha (e também, por breves momentos, a cidade de Tóquio), em um personagem por si só.

Há ainda o elemento espiritual presente na jornada de Kaito e Kyoko. A transição entre infância e juventude não parece ser demarcada pela mera passagem de tempo, ao menos não no sentido secular da coisa. A transição acontece, acima de tudo, através de ritos específicos, indispensáveis para que o amadurecimento possa ocorrer.

O crescimento dos jovens se confunde, assim, com o equilíbrio natural do lugar que os cerca. Todos os grandes ritos são marcados também por eventos que se relacionam de uma maneira ou de outra com a natureza – a tempestade, com sua chuva, seus fortes ventos e seus escombros sendo o momento catártico dessa relação, o empurrão final para que as duas crianças deixem a infância, conscientes do balanço delicado entre vida e morte/homem e natureza presentes no lugar em que eles se encontram.

Muito embora seja um filme a respeito de dois adolescentes entrando na fase adulta, O Segredo das Águas se fortalece bastante quando nos coloca para observar elementos circundantes aos dois jovens.

Num dos arcos da história, a mãe de Kyoko está gravemente doente. Parentes e amigos visitam a casa da garota para despedirem-se da mulher enferma. Numa longa cena, todos na casa entoam canções folclóricas japonesas, inspirando os mais potentes sentimentos na mulher, que responde através de sorrisos, lágrimas e movimentos, carregados de vida por serem justamente os espasmos vitais finais de uma pessoa que, através da consciência/memória afetiva, é capaz de prolongar sua estadia no mundo terreno, apenas para poder sentir aquelas canções um pouco mais.

Num outro arco, Kaito viaja a Tóquio para passar um dia com seu pai. O garoto conhece as instalações do estúdio de tatuagem que o pai trabalha, os dois saem para comer e beber e conversar sobre diversos tópicos, em cenas tocantes que representam a atmosfera geral do filme, ligada à comunhão de personagens que são bons, embora não consigam se comunicar perfeitamente bem.

No simbolismo mais escancarado de Kawase, o pai de Kyoko relaciona a vida de sua esposa a uma onda, algo que a diretora já havia feito através de elipses anteriormente. As pessoas vivem até se encontrarem com alguém, num momento de forte ligação física e espiritual que transformará essas duas pessoas em uma só, enquanto a onda estiver de pé. Para os jovens Kaito e Kyoko, o satori começou agora.

Comentários (3)

Augusto Barbosa | sábado, 24 de Janeiro de 2015 - 13:20

Kawase finalmente com crítica no site! o/ No aguardo para ver este aqui no cinema - se o bendito circuito permitir, claro.

Nilmar Souza | sábado, 24 de Janeiro de 2015 - 13:31

Kawase tem uma sensibilidade única. Transforma a natureza num personagem vivo dentro do filme. Vejo esse segunda, no cinema (deve ser a coisa mais linda do mundo).

Augusto Barbosa | sexta-feira, 10 de Julho de 2015 - 20:16

'Cabei de ver. Interessante como as noções, típicas de Kawase, de ciclo de vida e conexão à natureza - que compreendem o homem como "apenas" mais um elemento desta, tão falível e passageiro quanto qualquer fenômeno natural, quando não diminuído frente à sua força - dão um significado muito mais denso ao processo de amadurecimento/passagem de fase do coming of age: a fim de que ocorra a transição é preciso que se compreenda a efemeridade da existência, para que então se possa entender a necessidade de se relacionar com o outro, e é assim que Kawase problematiza o sexo (sempre presente nesse tipo de filme) - enquanto Kyoko é mais sensível ao momento e saca mais rápido, muito por causa da situação terminal da mãe, Kaito passa o filme quase todo inerte, crendo piamente na estabilidade e na permanência dos laços humanos, e só finalmente se entrega ao sexo quando consegue captar a naturalidade do transitório na vida do homem.

Filme lindo da porra.

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