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Críticas

Cineplayers

Uma discussão muito boa sobre o tema do aborto, carregada por uma interpretação ótima de Imelda Staunton.

7,0

O Segredo de Vera Drake é sobre o paradoxo moral do aborto – tirar uma vida, mesmo que esta ainda não tenha consciência da morte é um crime, mas deixar uma criança nascer para ser chutada não seria o melhor dos cenários para se dar a luz, certo? A visão de cada espectador sobre este recorrente tema no cinema (sempre tratado em filmes menores, obviamente, já que nenhum diretor ousaria colocá-lo em um filme se quisesse ter um campeão nas bilheterias) certamente deve influenciar no seu julgamento em relação à qualidade deste filme. Porém, uma coisa é inegável, sendo a favor ou contra: Imelda Staunton fez o que os críticos gostam de chamar a performance de uma vida. Ou quase isso!

Utilizando uma técnica bem básica, Vera Drake introduzia uma bomba de sucção na vagina das moças que iria abortar e, lá dentro, jogava uma mistura de desinfetante com sabão. Dois dias depois, o aborto acontecia. Para ela, era uma prática de compaixão para com as mães que não queriam os filhos; para a lei, é um crime grave. Quando não abortava, Vera era uma simpática mulher que dava conta de marido, filhos, mãe doente e ainda arranjava tempo para trabalhar como empregada doméstica em vários lares, na Inglaterra dos anos 1950. Um exemplo duplo de vida, de um lado negativo; de outro, positivo.

A direção e o roteiro de Mike Leigh (os créditos pelos dois são unicamente dele) nos pregam uma peça: ao mesmo tempo em que endeusa a personagem, mostrando como era uma pessoa carinhosa, atenciosa (mesmo os policiais ganhavam o adjetivo “querido”) e irrepreensível como ser humana aos olhos de sua família, o diretor nos presenteia com cenas bem cruas e desumanas de todo o processo dos abortos. Isso acontece de forma até mesmo repetitiva, para que estes atos não fujam das mentes de seus espectadores quando Vera fosse julgada pela justiça da Inglaterra, mais tarde.

Agora, além da importância como instrumento de discussão, Vera Drake proporciona, com sua atriz principal, uma das grandes interpretações no cinema no ano em que foi lançado. O filme está cheio de passagens complicadas para um ator, planos com longa duração carregados de emoção. Talvez o espectador mais experiente (ou mais atento) perceba algumas nuances que indiquem overacting (atuação exagerada) por parte de Imelda Staunton em determinadas cenas, mas isso é perdoável, pois embora os seus textos sejam simples, suas expressões devem ter demandado um grande esforço artístico. O elenco coadjuvante ajuda nesse sentido, trazendo solidez ao filme, mas a estrela mesmo é Imelda, isso é incontestável.

A direção de Leigh mostra-se muito sóbria. É obviamente um filme de baixo orçamento, filmado sob um céu nublado, fotografia enfeiada para ratificar o tema sombrio. Há alguns ângulos muito bons que o diretor conseguiu alcançar, mas ele jamais tenta se sobrepor ao tema ou aos seus atores, o que é apreciável nesse tipo de filme. A capacidade de Vera Drake – o filme – de funcionar como entretenimento é verificada quando percebemos que o diretor consegui nos fisgar, criando uma curva ascendente de interesse sobre o tema e o destino que Vera Drake – a personagem – terá no seu ato derradeiro. Em nenhum momento é um trabalho de tirar o fôlego, note isso, mas é sim um trabalho bem acima da média em termos artísticos. Não por coincidência dirigido por Leigh, que tem em sua carreira o elogiado Segredos e Mentiras.

Filmes como esse geralmente são exemplos sólidos de uma espécie de cinema que deveria ser mais bem divulgada e mais assistida, por tratarem-se de temas importantes discutidos – ou pelo menos exibidos – com seriedade e de valor artístico alto. Não se tratam de folhetins vazios e mensagens ignorantes feitas para um público televisivo cada vez mais mumificado e sem identidade própria. Isso é cinema, de fato. E, ainda que tenha seus defeitos e seja perigoso no sentido de tentar resolver questões mais complexas que suas duas horas de duração poderiam permitir, é um filme que deve ser assistido e apreciado como entretenimento, como arte e, principalmente, como base para uma discussão maior. Temos aqui um trabalho mais do que recomendado de um diretor muito bom.

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