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Críticas

Cineplayers

O caos encapsulado.

8,0

Terry Gilliam é um cineasta que trabalha mais com forma do que com movimento, por isso seu cinema esquizofrênico tem o valor muitas vezes encontrado apenas em suas propriedades imagéticas, talvez em alguns casos em detrimento de um roteiro sólido. A maneira como ele “molda” seu material atinge níveis de bizarrice e criatividade que constantemente beiram o caos visual e narrativo. O ápice desse estilo peculiar e difícil se encontra na obra-prima Brazil - O Filme (Brazil, 1985), um pandemônio histérico que atira pra todos os lados e acaba por conseguir chegar mais longe do que sua “desestrutura” parece indicar. No entanto, desde Brazil o diretor só conseguiu reafirmar e inovar dentro desse seu próprio universo durante algumas vezes, como foi o caso de Os 12 Macacos (Twelve Monkeys, 1995) e Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998). Da última década pra cá, seus filmes têm se mostrado inconsistentes e insanos, mas de uma maneira já não mais vantajosa.

Com O Teorema Zero (The Zero Theorem, 2013), seu mais novo trabalho, o diretor parece finalmente reencontrar a fórmula que tanto funcionou em suas mãos no passado, mas que ultimamente andava sendo mal utilizada. Isso é um acontecimento que merece ser notado porque, gostando ou não, é um artista de talento único e faz um cinema de características inigualáveis. Aqui, ele retorna à ficção científica, o gênero no qual seu estilo melhor se desenvolve, embora seja fato que o gênero em si é apenas uma base para nortear o espectador, e que no total se trata de uma obra que ultrapassa qualquer pré-determinação. Na trama ambientada em um futuro distópico, temos Qohen Leth (Christoph Waltz), o funcionário exemplar de uma mega corporação, que vive recluso em uma igreja abandonada, aguardando um misterioso “chamado” telefônico que supostamente lhe revelará o significado de sua existência. Enquanto isso, é convocado pelo seu excêntrico chefe (vivido por Matt Damon), para desvendar o Teorema Zero, sob a promessa de que com esse serviço ele finalmente receberá o que espera.

As influências são muitas, desde as mais óbvias, como o romance de George Owell, 1984, até as de seu próprio cinema, em especial Brazil. Tanto estética quanto tematicamente, O Teorema Zero segue os mesmo princípios aplicados por Gilliam em Brazil, chegando inclusive a dialogar com o filme de 1985 vez por outra. Um colorido mundo fantasioso decadente, afundado em uma distópica realidade cinzenta de burocracias, impessoalidade e frieza, visualmente poluída por propagandas gritantes usadas pelo governo para imbecilizar a população. Os relacionamentos humanos mantidos apenas por interfaces, virtualmente, todos comandados por controles, telas, luzes frias e isolamento físico (inclusive o sexo é substituído por um contato on-line “mais seguro”). Um homem que se mostra a única vítima consciente dessa realidade e que busca em seus sonhos (mesmo que para “acessar” esses sonhos o próprio tenha que, invariavelmente, utilizar uma espécie de rede social) um escape para sua própria angústia.

O adicional, que torna tudo mais interessante, é a discussão entre religião e ciência. Se antes o meio usado pelo governo para anestesiar o povo era afundá-lo em uma burocracia ininteligível e mecanizar todas as emoções, agora a religião entra como aliada para oferecer uma salvação que na verdade não passa de outro meio disfarçado usado para cegar e entreter. O humor afiadíssimo e ácido de Gilliam entra em cena nesses momentos, como quando vemos Batman como uma entidade religiosa e um crucifixo em que a cabeça de Jesus Cristo está substituída por uma câmera de vigilância do Governo. Na outra ponta, Qohen procura o sentido de sua existência através de estudos sobre o Big Bang e os buracos negros do espaço, que no fim são definidos como um acidente ocasional que, como tempo, será naturalmente dissolvido. A vida, inclusive, é classificada como um vírus que corrompe o organismo da morte.

Claro que todo esse universo absurdo não passa de um reflexo de nossa sociedade atual, cada vez mais impessoal, virtual, confusa em meio a um sem-número de religiões e teorias da conspiração, isolando o homem em um enclausuramento psicológico e emocional que por vezes leva à completa loucura egocêntrica. Como sempre, Gilliam adota essa “ilógica” de seu roteiro como lente para filmar sua história, o que explica o completo caos de enquadramentos tombados, closes desfocados, imagens embaçadas e fotografia escurecida. É como se colocasse nossa realidade diante de um desses espelhos deformadores e usasse o reflexo disforme como base para adentrar em sua própria concepção de verdade.  

Em O Teorema Zero, Terry Gilliam finalmente recupera seu domínio como cineasta e imprime cem por cento sua identidade em cada frame, algo que ele já não parecia mais conseguir fazer em filmes como O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (The Imaginarium of Doctor Parnassus, 2009) e Os Irmãos Grimm (The Brothers Grimm, 2005). Sua sensibilidade artística se mostra apurada, como sempre foi, mas agora privilegiada pela maturidade que somente o tempo poderia lhe dar. Mas não se deixe estacionar na superfície de seu visual alucinógeno, pois por detrás de todo esse teorema de caos existe um observador afiado e bem humorado dos males do mundo moderno.

Comentários (8)

Raphael da Silveira Leite Miguel | terça-feira, 15 de Julho de 2014 - 22:22

Mais uma ótima crítica do Romero! Genial a comparação com os espelhos deformadores exemplificando a nossa realidade, é bem a cara do Gilliam. E como comentei no fórum, Gilliam nunca vai ser unanimidade, é um tipo de cinema específico, que agrada poucos, e parece que dessa vez ele acertou.

Patrick Corrêa | quarta-feira, 16 de Julho de 2014 - 20:27

A crítica está ótima e me ajudou a repensar um pouco o filme. Logo que saí da sessão, tinha achado ruim, mas fui me lembrando com mais calma de algumas cenas e diálogos e percebi que não era pra tanto, mas ainda esperava um pouco mais.
Talvez eu tenha problemas pra encarar o cinema de Gilliam.

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | segunda-feira, 06 de Outubro de 2014 - 10:02

Esperava mais, quando se trata de Terry Gillian sempre aguardo um tiro certeiro como Os 12 Macacos, que para mim é a obra prima de Gillian. Este filme tinha tudo para isso, inclusive o título, e ainda com Christoph Waltz protagonizando! Mas não consegui ter o sentido apurado de Heitor Romero, que fez uma bela crítica, para mim soou como se Terry Gillian tivesse pego Idiocracy de Mike Judge e feito sua versão, ou melhor, resolveu escrever um conto dentro daquele futuro caótico e possível uma vez que nossos relacionamentos estão cada vez mais presos à tecnologia.

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