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Críticas

Cineplayers

O melodrama manchado de sangue.

7,5
Hirokazu Koreeda é hoje o cineasta mais popular do Japão em termos de festivais. Com entrada praticamente garantida com qualquer filme que faça, ele trocou o habitual Cannes no ano passado por Veneza com essa sua aposta em um terreno ligeiramente diferenciado. Sempre andando pela via do melodrama quase a ponto de reconstruir uma tradição japonesa no gênero, que nos legou a obra imortal do gênio Yazujiro Ozu, Koreeda aplacava sua ânsia pelo real com longas de fácil assimilação popular e grande apreço entre seus pares, ainda que raramente se coloque em via de risco. Os passos seguros de sua filmografia ao menos rimavam com elegância e seus títulos representam hoje um terreno cuja emoção não pode ser controlada. Porém deve ter batido no cineasta uma necessidade de reinvenção e de refrescar o olhar, de respirar por outras paragens, e se valendo dos amigos advogados e dos diálogos travados com eles, nasceu essa trama recheada de sombras inclusive na ironia muito particular em como o diretor se move pela narrativa.

Koreeda já fez filme espírita, filme de ficção, e até começou no cinema com um roteiro de filosofia (Maborosi), mas existe uma zona de conforto assumida na sua filmografia que acabou fazendo dele uma figura não apenas reconhecível do ponto de vista da condução da trama como também em um porto seguro de cinéfilos, que sabem não apenas o que encontrarão com ele mas principalmente o nível de suas obras, sempre alto. Ao escolher se mover de forma diferente no cinema, Koreeda chamou a atenção de cara. Mas é bom deixar claro o jogo do diretor, sem qualquer spoiler, e que acaba tornando a experiência ainda mais relevante e instigante. Dentro da proposta que se abre onde o elemento suspense funcionaria como matéria-prima do produto, o autor encaminha essa estrutura para uma fôrma toda sua, e o longa aos poucos se revela Koreeda em tudo que se poderia imaginar.

A partir de uma abertura impactante em qualquer registro e que chama ainda mais a atenção vindo dele, testemunhamos um assassinato brutal à beira de um rio, que termina com o cadáver sendo incendiado numa festa da fotografia. Rapidamente o culpado é descoberto, preso e encaminhado para julgamento, pois o crime foi cometido contra um homem de posses. Igualmente rápida é a descoberta de que o assassino já tinha cumprido pena por outro homicídio que o tirou da circulação por 30 anos. O advogado designado para protegê-lo não demora para desconfiar de tudo, do crime do passado ao do presente, e pressionando o réu confesso percebe que terá muito mais trabalho do que poderia imaginar, tendo em vista a quantidade de vezes que o homem tem por hábito de mudar seu depoimento. O filme se encaminha para resoluções tribunais e a trama paralela observa as investigações do advogado. Uma das coisas mais felizes do filme é a radiografia do sistema de defesa japonês, que praticamente nunca é um tema em filmes exportados para o ocidente, no qual acompanhamos o desenrolar de carpintaria diferenciadas das ações tão tradicionalmente já dramatizadas. Mas Koreeda não se contenta e filme também o desconhecido desse ambiente, como as reuniões prévias entre advogados e juiz, tão pouco retratadas.

Desde as primeiras imagens fica claro como o diretor expandiu seu horizonte imagético. Como seu cinema geralmente lida com personagens muito palpáveis em histórias tão humanas quanto comuns, Koreeda sempre trabalhou com lentes simples em enquadramentos sem movimentos rebuscados, dando preferência ao plano estático construído pela montagem do mesmo; é algo geralmente usado pelos cineastas que preferem constituir seu cinema na métrica do realismo. Mas ao mergulhar num universo de fonte norte-americana, o autor responsável por Pais e Filhos não se fez de rogado e entregou um longa onde o grande diferencial não está nunca no roteirista que ele é, mas no cineasta que ele tinha sido até então. Se mostrando altamente capaz com posicionamentos de câmera inspirados, uma luz capaz de diferenciar cada tempo e cada cenário, o diretor constroi com extrema beleza e sem jamais perder sua predileção pelo ser humano, o grande pilar de suas obras. A cereja do bolo técnica é o compositor erudito Ludovico Einaudi, que compôs uma trilha delicada e ao mesmo tempo super característica de um cinema mais direto.

Já tendo sido selecionado para a próxima competição de Cannes no registro habitual do seu cinema, fica claro que Koreeda apenas deu um passeio por uma seara que apenas não é a sua, mas que ele demonstra aqui ter capacidade para reger. O senão do filme é nas molas que movem um longa tão característico das produções de gênero ocidentais, que talvez tenham emaranhado seus escritos, trazendo mais reviravoltas do que o necessário e complexificando a história além da conta, quase deixando o todo confuso. Ainda assim não é todo dia que vemos um cineasta tão hábil no universo que escolheu pra si passar para um outro lado de maneira tão desenvolta e mais, respeitar os seus próprios cânones a ponto de inseri-los na sua nova experiência, sem ferir o lugar diferente que construiu e ainda assim se mantendo fiel a sua filmografia.

Além disso, toda a rica construção que geralmente ele apresenta em torno de seus personagens é um plus em um projeto que precisava de um protagonista tão amplo e tão cheio de facetas quanto Misumi, defendido de maneira tão singular pelo fabuloso Koji Yakusho, ator imenso e repleto de predicados. Com a experiência infinita adquirida em mais de 30 anos de carreira nos quase 100 trabalhos, Yakusho passeia com extrema segurança por um protagonista muito arriscado e que sempre tem múltiplas visões sobre suas próprias ações. É essa parceria entre ele e seu diretor que mantém o filme em voltagem elevada, quando um cineasta tão meticuloso envolve um suspense de tribunal no seu papel delicado de construções familiares, reconstruções do passado e das famílias que se encolhe, aqui em meio ao caos interno de cada um deles.

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