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Críticas

Cineplayers

Fantasia como liberdade.

7,0
Há duas forças principais que norteiam O Tesouro, novo filme de Corneliu Porumboiu: a ficção-histórica, onde o contexto sócio-político passado e presente da Romênia é visitado, e a fantasia, onde a trama consuma o desejo de aproximação de Costi (Toma Cuzin, lol) com seu filho Alin (Nicodim Toma).

Com uma Romênia submersa numa crise econômica que coloca seus cidadãos sempre à beira de um precipicio financeiro, o vizinho de Costi (Adrian, interpretado por Adrian Purcarescu) bate à sua porta com uma roga: 800 euros para que ele consiga quitar as dívidas referentes ao seu imóvel. Costi não empresta o dinheiro a Adrian, alegando não dispor da quantia requisitada. Os vizinhos se despedem e Costi volta para o quarto do filho para continuar a contar a história de Robin Hood. Alguns minutos depois, Adrian retorna para abrir o jogo: os 800 euros seriam usados para alugar um detector de metais afim de encontrar um tesouro supostamente enterrado pelo bisavô de Adrian no quintal de sua casa de campo.

É verdade que Costi não tinha dinheiro o suficiente para emprestar ao vizinho, mas diante de um projeto que pode culminar no achado dum tesouro pré-comunismo, o pai de família resolve fazer alguns sacrifícios financeiros (empréstimos, saídas antecipadas do trabalho e boicote de dívidas planejadas) para executar o plano.

O mote do filme parece um tanto infantil, dois adultos depositando todas as suas esperanças numa história possivelmente fajuta sobre um tesouro enterrado num quintal 70 anos atrás, mas Porumboiu abraça esse lado lúdico de sua história com uma autenticidade capaz de fazer qualquer espectador comprá-la como verossímil.

Impressiona o uso que o roteiro de O Tesouro faz do plano de fundo social de sua história. Através das falas dos personagens descortina-se um pouco da história daquela país, especialmente no que se refere ao período pós-Segunda Guerra mundial. Inicialmente, a partir dos diálogos, o espectador é convidado a imaginar as situações e os cenários narrados pelos personagens. Quando Costi e Adrian chegam no interior de Islaz, a casa de campo ergue-se como um verdadeiro monumento à memória de um período específico da História.

Em cada pequeno local da casa reside um fragmento que testemunhou as transformações de décadas conturbadas. Do tesouro, que realmente jaz enterrado dois metros abaixo do solo, às paredes em decomposição, Costi e Adrian realizam uma incurssão particular a vários tempos – uma residência familiar tomada pela chegada dos comunistas, transformada em bar de strip tease e casino e depois transformada em um jardim de infância. Mais que uma casa de campo, a residência de Adrian é um mausoléu simbólico de uma certa Romênia, cada vez mais fragilizada.

O Tesouro, porém, não se contamina com o peso dramático dessa primeira força narrativa. O filme é propositalmente leve e repleto de humor (a gag gerada pelos apitos do detector de metais é excelente). Isso porque há uma outra força por trás do filme, algum tipo de arco narrativo que existe anteriormente mesmo à proposta de Adrian. O filme abre com o perfil desconsolado de Alin, filho de Costi. Após uma breve conversa entre os dois, a cena termina com o garoto retrucando o pai: “Você não é Robin Hood”.

Cerca de uma hora e meia depois, o filme retrata um processo narrativo definitivamente farsesco que transforma Costi, um assalariado romeno pai de família absolutamente comum numa versão dum dos heróis mais clássicos de todos os tempos. Dentro do filme, essa transformação ocorre através duma certa ruptura com a verossimilhança – algo que pode compreensivelmente desagradar muitos espectadores. Porém, absortos numa realidade sociopolítica um tanto opressiva,  Porumboiu decide libertar seus personagens dela, inserindo-os num cenário mais jocoso. Libertos da verdade, seus personagens podem travestirem-se em fantasia, tornando-se heróis que distibuem tesouros, ou camponeses que recebem gratificações de um bonfeitor sem nenhuma segunda intenção.

Com o campo da fantasia estabelecido como objetivo de Costi desde o início (é por ela que ele realizou sacríficios, boicotando dívidas e fazendo empréstimos), o que temos, ao final, é a reconfiguração da proposta do filme: antes de ser um filme com um plano de fundo ligado à realidade romena, é uma história localizada na relação de um pai com seu filho. O sacrifício, a entrega, a obstinação. O valor simbólico da aventura de O Tesouro só pode ser traduzido nesses termos. O filme está longe de ser perfeito (na verdade ele é apenas bom), mas sai desse lugar de ternura para contar uma história cheia de coração.

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