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Críticas

Cineplayers

Risco ocupacional.

8,5
Pasolini, Tarkovsky, Varda, Béla Tarr, Paradjanov, Jodorowsky, Claire Denis, Kiarostami, Leos Carax: o que evocam todos estes nomes perante o cinema? Que são mais que cineastas, que os epítetos pouco fizeram para contornar essa assertividade montada sempre sob particular transmissão de singularidade; que, de um lado, o cinema lhes foi e é insuficiente – pareciam, parecem, de dentro do mundo, extrair uma turbulência maior que uma “duplicação da realidade” possa oferecer em termometria –; de uma outra face, aliás muito íntima, fazem do ofício uma questão de borda: filmar é colocarem-se a si mesmos, e ao filmado, em posição de fragilidade, e, demasiado à beira do abismo, o filme repentinamente morre só para crescer em possibilidades, enquanto Cinema. Metonimicamente, dele fazem algo a mais e que não é menos que a própria questão que originou o berçário primeiro compilado por André Bazin: O Que É O Cinema? A pergunta, esta não cessou de se responder, e um outro multiartesão a ela veio adicionar uma segunda na verdade já inerentemente impregnada em cada segundo da ‘criação’, que não sabemos sequer de onde começou e onde termina: o que vem a ser o matrimônio entre artista e obra?
 
Entre aventurescos e polissêmicos desvios, aventurescos porque de um infindável gosto pela constância dos percalços e jornadas embainhando o liga-ponto dos planos, em seu derradeiro filme O Testamento de Orfeu (Le Testament d’Orphée, ou de me demandez porquoi!, 1960), Jean Cocteau multiplica as não-respostas para esquadrinhar as sucessivas situações que relançam a questão sob um custo também pago por todos os nomes supracitados, um fardo travestido dos julgamentos que em qualquer ponto artificial da história recaíram sobre um pendor para a febre sensível, para a loucura, para a latente desordem dos significados do mundo através da atitude inquieta sobre o signos: “só pode ser um poeta”, dizem, premonitoriamente, daqueles que parecem conter o relance sobre o futuro. São todos poetas quando na facilidade agoniada dos epítetos para dar função, mas também quando não se sabe conceber – de que lugar pode ter se concebido àquele – a descarga de sagacidade de que alguns parecem ser vítimas perpétuas. Nas palavras de Minerva, “acusado de inocência e de incessantemente penetrar num mundo que não é seu”, o cineasta decide para seu blefe de “lance final” que será a colocação à prova de seu envolvimento mesmo com a vida, sobretudo a que fica depois de sua carne (imortalidade) e aquela a que ele olha como se se voltasse para trás, Orfeu e Eurídice (memória, infantes): um testamento.  

Milagrosamente documentando o que agora têm a lhe dizer, “por magia”, os marca-passos e dobras ressuscitados como fantasmas, arautos, juízos ou ciganas, suas criações e seguidores nos mais sinuosos sentidos, assim como, também por encantamentos – truques inflamados à guisa de Meliès –, fazendo seus elementos basilares, filosofais, Tempo e Sonho, se verem refletidos em metamorfoses típicas do aparato cinematográfico hoje tidas como simples, Cocteau parece sempre alternar, ou antes interpor, via inclinação travessa, uma astúcia linguística de raposa e uma saída tão plenamente cênica – que é também o filme, a pergunta, se transmutando -, de forma que, semelhante ao deslumbramento de suas personas iniciais diante de desaparecimentos, fade outs e rewinds, o contorno das coisas e a iminência do tempo ficam sujeitas à aquosidade de um verdadeiro sonho: tudo escorrega numa força “deslocativa” pouco humana, pouco afeita às vontades, cheia de uma ordenação de outro mundo. E Orfeu treme de pavor, ainda que preparado para descer aos infernos. Não se pode habitar outro mundo que não aquele; só que a flor, antiga arma e objeto do poeta, agora também lhe devolve o olhar em sua forma despedaçada. 

Pois ele se desdobra, por reincidência do real, para resgatar de novo a flor da vida à vida. As alternâncias entre língua e cena, sob Cocteau, se pulverizam e renascem, dotam os literais quadros de um risco quase hercúleo, de uma necessidade de posicionamento para a qual o poeta é o melhor publicitário: se o cinema é a partilha momentânea de um sonho, aqui está um dos que melhor participam do intricado nó que é o ato de convencimento. Deveríamos, aliás, nos perguntar por que pouco se faz da histeria que facilmente inflama a crença e a presença física de um espectador, esta figura que, quando pouco convencida, contorce, ruge, não aceita ou faz da aceitação sua exclusividade; perguntar, assim também, e se o poema é aquilo que faz de seu “entendimento” do mundo algo de secreto ou estilhaçado, um instante de exclusividade partilhada, por que é o poeta aquele que ainda guarda o lugar de um convencimento sempre nunca-antes-visto. Orfeu (Cocteau necessitado de máscara) viajante do século XIII e auxiliado pela ciência para levar o chumbo no peito que o faria renascer naquele tempo, e eis que – truque! –, do mundo reduzido a um estúdio, da madeira e das cordas, irrompe um portão em sua assombrosa simplicidade: uma passagem a um outro mundo: trajando a pele velha e os costumes de então, o dândi, através de toda travessia subsequente, será acometido da multiplicidade de papéis que é a sobrevivência. Sobrevivência do poeta? Do vir-a-ser de todos, e “não me pergunte por quê”, diz o segundo título do filme.  

Será andante seduzido pelo canto de sereia de um personagem de outrora, pintor convidado pela morte, médico incitado a ressuscitar também a flor; será réu, encenador do coro da própria morte, se assumirá cego perante a própria mitologia. Ele trapaceia o destino procrastinando a própria morte, fabricando a “fonte petrificante do pensamento”, falando “uma língua nem viva nem morta”, dizendo da eternidade que é “um entrelaçamento desses corpos uns sobre os outros”. Para o eterno, não há tempo que passe. Encontrar um jeito de durar é fugir. Mas o viajante não salta ao tempo, ele o manipula e, assim com as mãos, inscreve entre meios sua própria legibilidade histórica. Mitologia. O trabalho do poeta é um de inserção, unicamente que se aceite entrar naquilo que fica num lugar de borda, sem chegar a ser, jamais também aquela outra coisa, e, no entanto, por um instante perdido no tempo, tão possível. São todos Carontes aos olhos de Cocteau, travessias, vislumbres encantados de marinheiros, custos de jornada. O sonho não é, afinal, nosso. Quiçá também não o sejam aqueles que sonhamos nós mesmos, mas à costura das partilhas poderíamos, como aquele Orfeu co-reescrito, dar o nome de historiografia. Risco ocupacional do cinema escrever com o tempo.

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