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Críticas

Cineplayers

A gênese do cinema de Cimino.

8,5
Uma questão talvez fundamental à arte cinematográfica (e a todas as outras) é a presença de um âmago incontornável, por mais que disfarçado das mais diversas formas e variações, uma essência inerente ao conjunto das obras de um autor – e esta palavra, aqui, já inclina o argumento a aproximar-se de uma política dos autores – e que faz com que reconheçamos, a despeito dessas variações mesmas, o registro indicial que se manifesta como marca pessoal de quem as faz. Conscientemente ou não, pouco importa, embora acredite-se que tal inconsciência na feitura empreste a esses autores certa elevação, status íntimo daqueles que ''se repetem'' quase sem sentir, imprimindo suas grandes questões cada vez mais com outras vestes, sem contudo perder uma espécie de polimorfismo. E multiplicidade das formas sobretudo porque, se todas as histórias já foram contadas e não houve ninguém para ouvi-las direito, é preciso dizer de novo.

Partindo da morte de Michael Cimino, volto a seu filme primeiro, que não é obra-prima como Portal do Paraíso (Heaven's Gate. 1980) ou O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978) - e nem precisa ser -, para, diante da lamentável perda (para a arte ou para o humano?; só do primeiro, por enquanto, pode-se dizer algo), perceber que já estava tudo ali, embrionário, como uma gênese que só se dá escancarada quando o ciclo tem fim, ou como o adulto que olha a fotografia da infância e diz: este sou eu, já estava tudo aqui. Que é a marca da autoria senão este ''eu''? Pois assim, enfim, se dá a presença de uma pessoalidade para o cineasta Cimino: um homem é extraído do local onde havia fincado raízes e sai de seu paraíso idílico para ser submetido à jornada infernal de provações sobre a qual ele não possui controle algum. Aliás, se um filme existe para provar que todo e qualquer filme, ao contrário do que se pensa e se relega para apenas alguns deuses do ritmo frenético, já começa quando algo está acontecendo, este é O Último Golpe (Thunderbolt and Lightfoot, 1974). A primeiríssima aparição dos personagens de Eastwood (travestido comicamente de padre) e Bridges já denuncia a mancha indelével do sujeito como aquele que carrega o passado tanto quanto produz a própria sombra. Não se quer? Mas ela existe, e dela não se escapa.

E desse rompimento com o que se tentou criar para o sossego presente, surge o paradoxo: tão involuntária como organicamente é estabelecida, entre o homem que foi arrancado e um outro, seja este inserido, seja salvador, seja perturbador (minto: os 3 ao mesmo tempo), não só uma parceria amical, mas a grande amizade homoafetiva que o cinema americano soube construir tão bem desde a sua própria origem. Toda uma sentimentalidade transferida para a figura do amigo, o afeto a paixão e a admiração que não foi e não será entregue à mulher: Lightfoot (Bridges), quando adolescente, havia fugido com uma, e dela se separou para trilhar o próprio caminho rebelde; Thunderbolt (Eastwood) nunca sequer menciona tal presença feminina, e trata a jovem com quem dorme como uma prostituta. Mas também o Michael Vronsky (De Niro) que abandona Linda (Streep) para recuperar o amigo que a guerra do Vietnã engoliu e despessoalizou; também o Michael Reynolds (Harrelson) de Na Trilha do Sol (Sunchaser, 1996), médico para quem a esposa é recolocada em segundo plano na tentativa de salvar a vida e o espírito do amigo latino. Esse amigo,  aliás, é sempre o depositário de uma fragilidade psíquica, sempre vítima e ao mesmo tempo maior entusiasta da jornada em que se lança como cão fiel junto a seu grande admirado.

''Por que você tentou matá-lo?'', pergunta Lightfoot ao quarto bandido sobre seu passado com o personagem de Eastwood na guerra, já que este inclusive tinha lhe salvo a vida durante o evento, somente para ouvir como resposta: ''porque éramos amigos''. E aí fica cristalino o misto passional que é a relação delineada entre as duas forças masculinas. Curiosamente, e um adicional perfeito ao tom histericamente cômico do filme, o temperamento de Lightfoot é jovial, efusivo, brincalhão (como parece ser todo laço de afeição entre dois homens), imanta a si mesmo e a seu amigo como numa complementaridade de opostos – Thunderbolt é seco e tem o peso da experiência nas costas, mas não menos dedicado e cuidadoso, como um pater ancestral. E para não dizer que a presença dessa América maculada, distante do ideário anglo-saxão protestante (os eslavos, os chineses, os latinos, os italianos dos filmes que seguiriam, todos eles, sim, americanos), já não se descortinava aqui, a dupla de protagonistas, ou o protagonista com seu adotivo preso em cordão umbilical, recebe nomes indígenas. Indígenas que, como o personagem de Bridges inocentemente defende através de seu nome e de uma negação, também são americanos. 

Mas, como fruto de algo que se pode dizer ser originariamente americano, senão em nascimento mesmo, ao menos em desenvolvimento, estilização e manutenção criativa, O Último Golpe trabalha com 3 dos gêneros (ou modos de articular e contar) tipicamente pertencentes ao país, costurando uma história que se desdobra, ao estilo dos grandes mestres, em filme de perseguição, road movie e, finalmente, narrativa de um grande assalto. Só que o descabimento é tão megalômano e paradoxal, que na verdade o que se segue é uma comédia vale-tudo (inclusive Jeff Bridges de peruca, batom e mini-vestido e um bandido disfarçado de vendedor de sorvetes) em que é permitido aos assaltantes, sempre carismáticos na irracionalidade do que se propõem, entrar em empregos como intermédio, inserindo-se na sociedade convencional como meio de angariar os recursos (dinheiro para armamentos) e conseguir, logrado o assalto, trinta, cem vezes os mesmos recursos para os quais estavam trabalhando. Haveria cenário mais propício que o próprio berço da grande sociedade de consumo? Não. Vida longa a Michael Cimino, que soube retratar o seu país em toda sua multiplicidade paradoxalmente una.

Comentários (1)

Robson Nakazato | quinta-feira, 28 de Julho de 2016 - 20:05

Um dos melhores filmes de assalto.
Até hoje me pergunto o porquê a Academia indicou Jeff Bridges como ator coadjuvante sendo que ele tem o mesmo tempo de aparição que Clint Eastwood.

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