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Críticas

Cineplayers

Ruy Guerra revisita Garcia Marques em um filme belo e estranho, que cativa pela ousada narrativa.

8,5

Este é o vigésimo-quinto longa de Ruy Guerra, adaptado do livro "La Mala Hora" de Gabriel Garcia Marques, o diretor brasileiro é amigo do escritor colombiano e vinha nutrindo esse projeto hà uns 20 anos. Guerra é ousado e seus filmes normalmente agradam mais à crítica do que o público e com este não é diferente, mas se pra cada cinco "Gatão de Meia Idade" tivermos um "Veneno da Madrugada" podemos considerar que a tão sonhada indústria do cinema brasileiro está funcionando de vento em popa.

O filme se situa numa cidadezinha do interior em algum lugar da América Latina e numa época ignorada. Assim, sob uma chuva torrencial incessante, a vida dos moradores vem sendo perturbada por alguns fatos: Há uma guerrilha nos arredores e um oficial do exército (interpretado por Leonardo Medeiros) foi nomeado seu Alcaide, um tipo ao mesmo tempo xerife e prefeito. Além disso, uma série de bilhetes anônimos aparecem nas portas das casas pela manhã espalhando fofocas da vida pessoal dos locais. O Alcaide tenta resolver o mistério mas é detestado por todos, rude, ofende as pessoas com suas sinceridade e incorruptível, irrita os mais ricos que não conseguem manipulá-lo.

Me incomodei a princípio com os diálogos, que achei presos demais à fonte literária, nas mãos de Leonardo Medeiros porém, se tornam parte do personagem. Ele carrega bem o filme e empresta um tom exagerado que funciona com o texto rebuscado de Garcia Marques e a direção de Guerra, repleta de longos planos sequência que reforçam o aspecto teatral. É bom se lembrar que a literatura de Marques existe em uma espécie de universo próprio, meio fantástico e, assim como a chuva eterna que atinge o vilarejo, seus personagens não devem ser vistos como figuras realistas, Medeiros me lembrou bastante personagens de Jean Pierre Geunet (Delicatessen). Infelizmente nem todo o elenco consegue atingir o mesmo patamar e parecem estar apenas lendo texto, mas há boas atuações de nomes consagrados como Fábio Sabag, na pele do padre que vive cercado de ratos e do sempre competente Tonico Pereira como o barbeiro, além de excelentes personagens secundários como a viúva interpretada por Juliana Carneiro e do juiz covarde, vivido pelo ótimo Nílton Bicudo. Os personagens de Garcia Marques são sempre muito ricos e interessantes, a ironia de dar ao Alcaide uma dor de dente e tornar o dentista seu principal rival político é um achado.

Guerra construiu uma narrativa complexa, existem pelo menos três linhas de tempo que dão voltas em torno de certos acontecimentos e é preciso estar atento a eles, assim que uma linha de tempo acaba, o filme recomeça alterando certas situações que levam a diferentes consequências, mas ao contrário de um David Lynch, não são sonhos ou acontecimentos metafóricos mas sim a própria realidade do filme. É um cinema difícil, mas muito bem realizado, e as aparentes "esquisitices" de Guerra funcionam perfeitamente. A música é composta de ruídos minimalísticos exceto quando os personagens estão tocando instrumentos e a produção é simples mas bem acabada, com cenários e figurinos bem resolvidos (a direção de arte é de Marcos Flakman), aliados à fotografia quase expressionista de Walter Carvalho, que joga o tempo todo com luzes quentes e sombras, juntas criam um clima decadente e úmido que parece palpável. A câmera dele se move pelos ambientes, passa através de janelas, cria composições lindas. É um filme tecnicamente impecável, que parece muito mais caro do que foi.

Esses méritos técnicos foram reconhecidos com dois prêmios no Festival de Brasília, mas o diretor também merece reconhecimento por transpor tão bem um escritor complexo como Garcia Marques, o que não é novidade para ele pois na verdade é sua quarta adaptação do escritor. Guerra é um dos grandes diretores autorais deste país e já é um alívio ver que ele continua em forma e fazendo filmes, mesmo em nossa frágil economia.

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