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Críticas

Cineplayers

Uma viagem não ao futuro, mas a um passado no qual superproduções ainda sabiam ser politicamente incorretas.

8,0

Em uma cena de O Vingador do Futuro (Total Recall, 1990), o herói Douglas Quaid está sendo perseguido por um grupo de vilões em uma estação de metrô. Em sua alucinada fuga, Quaid é alcançado pelos bandidos em uma escada rolante repleta de pessoas alheias a tudo o que está acontecendo. Assim que o grupo alcança o mocinho e aponta suas armas para ele, Quaid não hesita e pega a primeira pessoa que encontra para utilizá-la como escudo humano. À medida que o inocente homem – provavelmente a caminho do trabalho ou da casa da namorada – recebe uma saraivada de balas, devidamente exibida com muito sangue e pedaços de corpo voando, Quaid consegue eliminar os seus perseguidores e seguir em sua escapada, aparentemente sem qualquer remorso sobre ter causado a morte de uma pessoa qualquer para salvar a sua própria vida.

Infelizmente, uma cena como essa jamais teria sido filmada hoje em dia, ao menos no cinema comercial norte-americano. Atualmente, grandes produções nem mesmo trazem cenas com sangue, com medo de tomar uma classificação etária maior e, por consequência, perder parte de seu público/arrecadação. No início dos anos 90, porém, o politicamente correto ainda não era tão dominante, dando oportunidade a um cineasta como Paul Verhoeven construir sua reputação em torno dessa liberdade, em filmes fortemente baseados em sexo e violência, desde os seus primeiros trabalhos ainda na Holanda até as suas realizações já nos Estados Unidos, como Conquista Sangrenta (Flesh + Blood, 1985), Robocop, O Policial do Futuro (Robocop, 1987) e Instinto Selvagem (Basic Instinct, 1992).

O Vingador do Futuro, terceiro filme norte-americano do diretor, é mais um exemplar de sua forma de pensar e fazer cinema – ainda que inclinado mais para o lado violento do que para o erotismo. Escrito por Ronald Shusett, Dan O’Bannon, Jon Povill e Gary Goldman a partir de um conto de Phillip K. Dick, a produção se passa em um futuro talvez não tão próximo e definitivamente nada agradável. Corrupção, ganância, opressão e terrorismo fazem parte da visão de Verhoeven e de seus roteiristas sobre este futuro, uma visão cuidadosamente trabalhada pelo cineasta e pelo design de produção, que adotam uma estética suja e claustrofóbica, com utilização constante da cor vermelha, de espaços pequenos e planos sempre com muitos elementos, deliberadamente poluídos, passando a ideia decadência e degradação que faz parte da trama.

Toda essa construção de significado por parte do diretor se torna ainda mais forte pelo fato de que a grande maioria dos efeitos especiais é realizada através de trucagens reais ao invés de CGI – obviamente, a época em que o filme foi realizado também justifica isso. É interessante ver cenários de verdade e maquiagens, elementos que conseguem convencer sem apelar para imagens geradas por computador, em um exercício de criatividade que, ao mesmo tempo, diverte e fascina. Da mutante com três seios (que já se tornou icônica no cinema), passando pelo grotesco Kuato e chegando até aos cenários e ao planeta Marte, O Vingador do Futuro é uma realização que ainda hoje impressiona – a agonia, por exemplo, de ver os olhos saltando do rosto quando em contato com a atmosfera alienígena dificilmente daria tanto desespero caso tivesse sido feita em CGI.

O que também colabora para que O Vingador do Futuro não pareça datado mais de vinte anos após o seu lançamento é o ritmo alucinante imposto por Paul Verhoeven. Beneficiado por um roteiro extremamente objetivo, que não perde tempo em digressões, o cineasta atinge uma construção quase impecável para um filme do gênero, com cenas de ação eficientes e uma trama que, nas poucas vezes em que diminui a velocidade, o faz para apresentar um novo fato ou alguma reviravolta. Como se não bastasse, o filme ainda encontra espaço para momentos de humor que realmente funcionam por mostrar que o filme não se leva muito a sério, quase assumindo uma identidade de filme B com toda a sua violência, tiradas espirituosas e bizarrices. Com isso, as quase duas horas de O Vingador do Futuro passam voando para o espectador, que se esbalda com a agilidade da trama e as boas sacadas visuais de Verhoeven e seu time.

Para quem gosta de procurar significados em tudo, O Vingador do Futuro também é um prato cheio. O filme pode ser (e já foi) analisado como uma reflexão sobre a identidade do indivíduo, sobre a importância do passado e das memórias ou diversos outros prismas. Tudo isso, porém, talvez seja procurar pelo em ovo. A produção de Verhoeven é uma ficção-científica de ação bastante direta, com o claro objetivo de entreter, não propor grandes discussões. É basicamente preto ou branco, sem áreas cinzas: os vilões são simplesmente malvados, os mocinhos são apenas bons e o herói quer ficar com a garota e salvar o mundo (mesmo que esse não seja o nosso). São os elementos básicos de filmes de aventura apresentados de modo até caricatural, mas que, diante da abordagem de Verhoeven, acabam virando um ponto a favor do filme, e não um problema.

Na realidade, existe apenas uma reflexão proposta por O Vingador do Futuro que realmente pode ser tratada como tal: aquilo pelo qual Douglas Quaid passa é real ou é fruto das memórias implantadas pela Recall? Assim como a discussão sobre a infidelidade de Capitu ou sobre Deckard ser ou não um replicante (curiosamente, em outro filme adaptado de uma obra de Phillip K. Dick), Verhoeven prefere manter a ambiguidade, deixando para o espectador a tarefa de chegar à sua própria conclusão. Diversas pistas são dadas para justificar as duas interpretações, o que apenas aquece a mítica em torno do filme: os olhares ambíguos de Sharon Stone no início e os sonhos de Quaid com Melina pesam para um lado, enquanto a ausência de um epílogo e a fala do suposto funcionário da Recall, que diz tudo o que vai acontecer até o final do filme, para o outro.

Mesmo com um roteiro construído de forma extremamente eficaz dentro do que se propõe, O Vingador do Futuro ainda tem os seus deslizes. A fantasia de mulher que Quaid usa para entrar em Marte, por exemplo, surge sem maiores explicações, assim como o fato de o protagonista assumir rapidamente a confiança típica de um agente secreto: seu “Você viverá mais” para um mutante que começa a provocá-lo não é algo que um homem comum como Quaid diria – ou talvez aí esteja mais uma dica para a discussão comentada no parágrafo anterior. Já a falta de uma personalidade mais marcante aos personagens não chega a ser um problema, especialmente devido ao elenco. Arnold Schwarzenegger, no auge da sua carreira, tem excelente presença em cena, assim como Michael Ironside no papel do vilão e Sharon Stone como a mulher sensual e de caráter duvidoso, papel que ela voltaria a interpretar sob o comando de Paul Verhoeven em Instinto Selvagem.

Empolgante e bem conduzido, O Vingador do Futuro é um filme que se assume sem receio como diversão, porém, uma diversão adulta, violenta e, por vezes, politicamente incorreta. Assistir ao trabalho de Verhoeven é voltar a um tempo nem tão distante, quando tudo era menos asséptico e os cineastas de grandes produções ainda tinham coragem ou liberdade para expor suas visões. Agora, é esperar para ver se o remake com Colin Farrell terá a mesma ousadia ou se conseguirá manter a irreverência que fez deste original uma experiência lembrada até hoje.

Comentários (14)

Lt. Dan | segunda-feira, 20 de Janeiro de 2014 - 21:18

O remake é um lixo total, a versão original é primorosa.

Raphael da Silveira Leite Miguel | segunda-feira, 20 de Janeiro de 2014 - 22:12

O remake é totalmente genérico e esquecível. Quanto à esse sim, uma das melhores filmes de ficção científica. Ótima crítica!

Rafael Alves | quinta-feira, 23 de Janeiro de 2014 - 19:06

A Cena da mulher de três peitos é genial.

Marcelo Queiroz | quarta-feira, 06 de Janeiro de 2016 - 13:31

Vai passar na TV aberta amanhã depois de muito tempo. Será bom rever esse ótimo filme e comentar depois. Verhoeven é foda.

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