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Críticas

Cineplayers

Os rebeldes com causa.

9,0

Para muitos, o ano de 1959 foi um dos mais importantes da história da sétima arte. Não apenas pelas incontáveis obras-primas – entre elas Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959), de Howard Hawks; Anatomia de Um Crime (Anatomy of a Murder, 1959), de Otto Preminger; O Tigre de Bengala (Der Tiger von Eschnapur, 1959), de Fritz Lang; Quanto Mais Quente Melhor (Some Like It Hot, 1959), de Billy Wilder; Batedor de Carteiras (Pickpocket, 1959), de Robert Bresson; Sombras (Shadows, 1959), de John Cassavetes; Imitação da Vida (Imitation of Life, 1959), de Douglas Sirk; O Quimono Escarlate (The Crimson Kimono, 1959), de Samuel Fuller; Intriga Internacional (North by Northwest, 1959), de Alfred Hitchcock; e A Sala de Música (Jalsaghar, 1959), de Satyajit Ray – mas também pelo processo de mudanças pelo qual o cinema começava a passar, em especial na França. O que começou com uma ousada confusão de tempo e espaço, que redefiniu a concepção básica que todos tinham de cinema, em Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Moun Amour, 1959), de Alain Resnais, ganhou uma voz ainda mais jovem e libertária na lente de François Truffaut com Os Incompreendidos (Les Quatre cents coups, 1959). Junto com Acossado (À bout de souffle, 1960), de Jean-Luc Godard, essas duas grandes obras-primas inauguraram o que hoje conhecemos como a nouvelle vague francesa.

Os Incompreendidos é uma história que de tão simples – sobre a vida de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), um pré-adolescente que sofre com a indiferença dos pais e acaba num reformatório depois de cometer pequenos delitos – poderia ser considerada extremamente realista, conforme a teoria de André Bazin, grande tutor e amigo de Truffaut. Mas isso não faz dela uma retratação enfadonha da vida de um personagem qualquer, pois Truffaut aproveita toda a liberdade ansiada por Doinel para projetar o próprio cinema a um novo patamar de excelência, talvez mais imersivo, livre da até então famigerada tendência do cinema francês em ficar apenas nas adaptações literárias de classe. Não apenas Doinel buscava a atenção de seus pais, não apenas ele buscava se livrar das inúmeras regras escolares e sociais, como também seu próprio criador queria a atenção do público, saindo de dentro dos estúdios para filmar ao ar livre na rua, onde tudo parecia (e era) vivo, ou acontecendo em tempo real, sem que nada pudesse deter ou proibir suas novas ideias.

Ao mesmo tempo, ele deixou sua marca autoral por não abrir mão das referências literárias que tanto o influenciaram, como Balzac, e firmou sua fama de um cineasta romanesco, mesmo coloquial, que viu primeiramente na literatura uma forma de um autor afirmar suas ideias e expressar sua arte, incluindo em obras posteriores, muitas delas adaptações literárias. Claro, nunca na intenção de se “filmar um livro”, como tantos fizeram e ainda fazem acreditando estar realizando cinema de verdade, mas com o intuito de evidenciar as influências em seu cinema, o que de certa forma não deixa de ser uma oportunidade de expor o seu lado mais pessoal. Ao todo, podemos enxergar sua obra como um único e longo romance, pontuado pelo retorno constante de Doinel – seu alter-ego – em diferentes momentos dessa trajetória. Com o tempo essas características foram se aprimorando, tornando-se clássicas, diferentemente de Godard, por exemplo, que sempre priorizou as experimentações radicais com a imagem como maneira de se afirmar como autor, características que também vieram a definir a nouvelle vague.

O que torna Os Incompreendidos um trabalho tão cultuado é justamente a época em que ganhou vida, auxiliando em um momento histórico e decisivo para o cinema, e cujos ecos ressoam até hoje. Foi um momento muito importante, e sua contribuição foi inestimável, principalmente porque se trata de um filme que não se limita a falar ou retratar a liberdade, como também vive essa liberdade que prega. Os Incompreendidos não é sobre a liberdade, ele é liberdade em seu estado mais límpido, puro e vivaz, como todo o cinema bom é. Se Antoine Doniel sofria com a indiferença dos pais, assim como Truffaut se incomodava com o marasmo que acometia o cinema francês (do qual ele entendia como ninguém, sendo um dos críticos mais importantes de todos os tempos), ou se Doinel buscava quebrar regras apenas para se encontrar no mundo e experimentar pelas primeiras vezes a sensação de ser livre, assim como Truffaut usou seu filme para libertar e se expressar, podemos encarar esta obra como atemporal. Um cinema que se mantém vivo e pulsante e que não se limita a tratar de determinado assunto, mas se preocupa em viver a experiência da qual está retratando. Diferentemente do que acontece muitas vezes, Truffaut, Godard e cia. encontraram no cinema uma espécie de catarse, e explodiram como os “revolucionários”, talvez incompreendidos (com o perdão do trocadilho), ou mesmo rebeldes. Mas no caso deles, ainda bem para nós, rebeldes com causa.

Comentários (12)

Gustavo Hackaq | sábado, 03 de Agosto de 2013 - 12:39

Bom, mas não obra-prima [3]

Daniel Mendes | sábado, 03 de Agosto de 2013 - 16:44

Bonitinho, mas longe de ser OP. Do Truffaut me agradaram mais Duas Inglesas e o Amor e Homem que Amava as Mulheres.

Wendell Marcel | domingo, 04 de Agosto de 2013 - 02:13

Ótimo filme!!
A crítica saiu superficial. Espero outra análise, sobre este marco do cinema francês.

Bruno Kühl | segunda-feira, 05 de Agosto de 2013 - 20:06

1959 foi monstruoso 😲

"Os Incompreendidos" é mais do que um dos pilares da nouvelle-vague, há nele uma marca de transição entre o clássico e o novo (diferente de Acossado que anseia pelo inovador), há um espírito jovem e um frescor de inovação e liberdade que até hoje não se apagaram. Tenho que ver mais do Truffaut, só vi esse e A Mulher do Lado, que é uma tragédia romântica bem madura e prova de que a sensibilidade dele continuou viva mesmo depois de vinte e tantos anos... Em relação à crítica, não sabia dessas influências literárias do Truffaut, os textos do Heitor sempre tem algo a acrescentar 🙂

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