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Críticas

Cineplayers

A manutenção da liberdade.

7,5
O cineasta John Trengove não poupa o espectador logo de cara. Com menos de 5 minutos de filme, somos apresentados à situação que vai se desenrolar em seu longa, e que consiste num intenso retiro para um grupo de jovens na África do Sul de hoje, mas que certamente tem reflexos em rituais arcaicos; dentre essa iniciação, a primeira atitude do processo é uma circuncisão à sangue frio, sem muito tempo para lamento. É feito e pronto, sem qualquer espécie de preparação mais cuidadosa. É uma mutilação certamente, mas também é a forma que a tradição e o conservadorismo encontraram para manter uma série de vidas sob uma espécie de comando naquela sociedade. Uma forma arcaica de demonstrar apreço pelo passado e pelo atraso, corroborada inclusive pelos que deveriam prezar pela liberdade, por estarem ainda mais à margem que o resto do grupo. É o passado gritando e dizendo que nenhuma decisão arrojada será permitida dentro de quem mantém sua raiz no antiquário, ainda que não-convicta.

O filme é o desdobramento de um curta-metragem do diretor sobre esse mesmo processo ritualístico sul-africano, onde uma montanha é palco da relação entre cuidadores e iniciados, o primeiro tratando da ferida criada no processo e adentrando esse jovem na vida adulta, e o jovem se deixando levar pelo fim da adolescência e o processo de formação de seus valores, anseios e desejos. O longa-metragem amplia a situação da iniciação, que acaba servindo de metáfora para o processo do crescimento de jovens homens e de outros homens, que se embrenham por sentimentos adultos, decisões adultas e pulsões adultas, rumo ao que deveria um futuro emocional. Ainda que o filme repita planos e mesmo marcações de cenas, o painel que se abre sobre esse processo até muito exótico e que propaga essa espécie de ancestralidade é ousado, violento sob pontos de vista emocional e físico, mas absolutamente fascinante no aspecto etnográfico. Trengove abre camadas de discussão sobre vilarejos onde provavelmente viveu para traçar uma história que busca romper com o passado e buscar um futuro particularmente melhor, ainda que controverso naquele ambiente.

Rituais envolvendo mutilações em tribos sul-africanas geralmente têm como alvo as mulheres, que ainda sofrem com esse processo. Os Iniciados no entanto é um filme exclusivamente composto por homens, e todos esse processo só diz respeito a esse grupo de personagens, de onde conhecemos Xolani. O diretor do filme sempre com espaço para respirar, de uma forma ampla e sem detalhes físicos, o oposto de Vija. Xolani e Vija são cuidadores de iniciados e se encontram anualmente naquela mesma montanha para o ritual pelo qual passam os jovens. Vemos o corpo de Vija em close: costas, bunda, boca, braços, tórax, Trengove aproveita tudo para desenhar sutilmente a relação entre esses dois homens, que não é nova mas precisa de uma renovação sem dúvida. Para isso, a promessa do horizonte é de abandonar as montanhas, de viver livremente. Mas o roteiro cria essa história de dependência e obsessão da forma mais milimétrica possível, com cada passo refletindo o agora e algumas possibilidades de futuro que vão se afunilando.

Toda a violência do filme, seja ela física ou emocional, é sempre muito chapada na tela, intensa e arranhada. Já o amor, o carinho e as relações de afeto estão sempre sob uma perspectiva aberta e amplificada, como se precisassem de fato do ar puro para existirem e serem interpretadas. Mas é um filme sobre esse processo, entre o ancião e a juventude, que entende mas é curiosa e precisa tatear. Já o passado é retrógrado e abafado, e dele só vêm lampejos do mal. É dessa maneira que a narrativa transborda no processo de criação autoral da direção, que o filme tenta conjugar os laços entre esses dois mundos que precisam coexistir. Como manter o legado que a História nos impinge sem perder as escolhas individuais e o livre arbítrio de hoje, muito mais múltiplo que nunca. Os extremos não ajudarão, e talvez o olhar diferenciado ainda seja muito ousado para certas camadas, mas o filme consegue transitar por entre diversas parcelas diferentes e mapeá-las.

A visão de Trengove para aquela realidade não é positivada, nem amainada. O que vemos é um espaço onde os raios de luz sempre são encobertos e onde a noite existe mesmo durante o dia, inclusive internalizada pelo protagonista. Para além de apresentar uma fatia ainda atuante dentro da sociedade do país, o filme confirma como a mudança dentro de um grupo arraigado ainda se busca de formas igualmente ancestrais e nada libertadoras. Sua crueza e seu tom onde sonhos são apenas sonhos não atrapalham a história sendo contada, mas não deixa de ser inusitado que um homem jovem lide com o cerceamento das liberdades individuais de uma maneira tão seca e sem esperanças. Um belo retrato sobre como mudamos com o medo e de como eles moldam nossos futuros particulares.

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