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Críticas

Cineplayers

O microcosmo de Tarantino.

8,5
De certa forma já vimos isso acontecer: arquétipos cinematográficos descortinados através de diálogos, desconstruídos por meio de reviravoltas, ressignificados através da espacialidade que exterioriza tensões internas.

Há mais de duas décadas atrás, Quentin Tarantino tornou-se o enfant terrible do cinema mainstream dos anos noventa com Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992). Com o filme, ficavam marcados alguns elementos determinantes: a amoralidade do seu universo, cínico e violento; os longos diálogos não necessariamente narrativos; a intertextualidade referencial usada para construir seu discurso de cinema, com filmes e personagens inspirados em sucessos do cinema de gênero; e naquele caso em específico, o local onde os personagens estavam isolados como mola propulsora do desenvolvimento da história.

Pode-se estar falando de Cães de Aluguel, mas também está se verificando tudo isso em Os Oito Odiados, oitavo filme do diretor filmado na gigantesca razão de aspecto Panavision 70mm, como os créditos iniciais orgulhosamente apresentam. O anúncio parece afirmar que, ainda que tenhamos entrado no mesmo universo do mesmo diretor, algo mudou em relação àqueles tempos de cinema independente e diretor revelação, onde o elenco alternativo de antes agora é um elenco de figuras consagradas e o cenário em locação agora tornou-se uma elaborada peça arquitetada entre design de produção e cenografia.

A pretensão épica que sempre existiu em Tarantino vem sendo mais acentuada em seus últimos filmes, tendência que iniciou em sua segunda década como cineasta com Kill Bill. A semente daquela hiperviolenta obra de artes marciais e dividido em duas partes floresce com cada vez mais força em seu cinema: é cultivada a força de uma narrativa e um narrador absolutos, guias de uma história em larga escala que, se acontece fora de quadro (as elipses e twists narrativos, o pano de fundo social e/ou mitológico), tem seus ecos dentro da recorrente misé-en-scene (a frequente intervenção narrativa guiando a estrutura, a câmera que move-se com propósitos narrativos, o flashback que nos confere a ciência da totalidade).

A costura da larga escala também se dá pela história em capítulos  apresentados por intertítulos, com o filme desde um primeiro momento fazendo questão que aquele que queira se inserir ali seja “forçado” a ver um esqueleto de estrutura exposto, com títulos que evidenciam os principais conflitos ou elementos dramáticos a serem explorados em cena. Junto ao diretor, o espectador é a testemunha de sua progressão, sujeito a ter em grande parte a ilusão de domínio sobre o que conhece.

A história dos caçadores de recompensa, seu cocheiro e a mulher condenada à morte que se veem isolados com outras quatro figuras por uma nevasca em uma cabana é ambientada no gênero do faroeste, com a ambientação se situando no interior do Wyoming e a época no contexto pós-Guerra Civil. As roupas, os objetos de cena, o contexto histórico e a influência de composição de quadro são firmemente calcada nos spaghetti westerns italianos, o que pode fazer com que o espectador que acompanha a carreira do diretor pode logo ficar tentado a traçar paralelos com seu antecessor direto, Django Livre (Django Unchained, 2012).

A relação entre os dois faroestes de Tarantino pede uma leitura à luz do cinema que o diretor criou para si em Bastardos Inglórios: repete-se aqui a câmera reveladora, que com a ajuda do design de produção explora o máximo do cenário escolhido, a música crescente e cíclica dos faroestes italianos em trilha inédita de Ennio Morricone e a criação via reciclagem do cinema antigo, ferramentas tanto para narrar o emponderamento (a saga do escravo liberto calcado na história de Siegfried e Brünnhilde em Os Nibelungos) quanto o descortinamento “bastardo”, onde se desconstrói mitos do filão para fazer um faroeste distorcido - os oito arquétipos de um gênero que tentam sobreviver e conviver apenas para falhar no intuito.

Tarantino faz um filme arquetípico - temos entre os personagens foras da lei, caçadores de recompensa, xerifes, carrascos, veteranos de guerra, vaqueiros, ex-escravos - mas como é distorcido, a convenção é rompida quando se faz um faroeste em uma casca de noz. Aqui, Tarantino deixa-se levar pelo fantástico, absurdo e cartunesco, mas também se afasta do tom “fabulístico” do grupo de americanos e europeus que decidiam a guerra usando o cinema como ferramenta e do ex-escravo e do imigrante que juntaram forças em um filme que evocava o blaxploitation, o gangsta rap e a mitologia alemã. A casca de noz de Tarantino não eleva nenhum personagem - antes, rebaixa-os todos. A cabana traz o que há de pior dentro de cada um deles e propositalmente desenvolvido como um vírus, o elemento dramático da desconfiança logo reforça o caráter de farsa que habita toda a longa metragem do filme.

Oito Odiados é também uma grande farsa. Fala sério de política pelo humor politicamente incorreto do início ao fim do filme; retrata de forma grosseira as opressões que seus personagens sofrem por suas condições sociais mas também revela o que eles preferem esconder; os personagens frequentemente explodem em fúria e são despedaçados com tiros em um banho de sangue quase irreal, sempre elevando o nível geral da obra um tom acima; os caminhos que a trama parecia tomar são pervertidos quando o narrador surge de forma frequentemente irônica para voltar no tempo, introduzir novos elementos e criar novos desencadeamentos de suspense através de plot twists, flashbacks e até mesmo reconstituições “figurativas”, ilustrações do que o personagem fala.

Entre quatro paredes, as armas de Tarantino viram a interpretação de seus atores e a sua capacidade de sustentar a cena pelo ritmo de diálogo de seus personagens, a capacidade de tornar tudo o que foi pavimentado cada vez mais exagerado, e a ambiguidade moral de pano de fundo que insere o fator imprevisível - pela inserção da questão “quem ajuda quem” e “quem trai quem” já estabelecida na primeira cena, onde o personagem de Samuel L. Jackson tenta pegar carona com o de Kurt Russel. Nessa sequência inicial, os longos planos, os diálogos no limite do grotesco, o ritmo lento, a expectativa de violência a qualquer momento formam  o “foreshadow”, a pista que desperta o pressentimento, já denunciando a sensação de trem desgovernado que o diretor quer criar desde esse momento mais lento, onde já sobram contusões, ferimentos e diálogos ofensivos e preconceituosos.

Em seu pano de fundo social revelado pelo humor farsante, que toca em temas como guerra civil, abolição da escravatura, crimes de guerra e a construção de uma sociedade moralmente questionável por indivíduos moralmente questionáveis, o filme se  interessa em criar narrativas que exponham as entranhas daquele ambiente, contestando o calvário do herói sofrido que se levanta contra a maioria com verdades factuais e os gerenciamentos das pequenas crises que compõem o todo (a relação entre o ex-escravo e o general racista, o mistério do sumiço de Minnie, as tentativas de fuga da prisioneira). A comédia bizarra e a estrutura narrativa exposta dão o tom que não existem figuras dramáticas polarizantes ou mesm empáticas aqui - são indivíduos componentes de uma complexa relação social que, isolados da sociedade, não demoram muito ao exibir uma hipérbole sangrenta da mesma.

A história do western é sempre refletida nesses “anti-westerns” ou filmes históricos baseados na época. Temos os personagens, temos os conflitos, temos o horizonte de expectativas. Mas não temos a construção típica, apesar da composição homenageada - a razão de aspecto gigante e a música de Ennio Morricone explodem aos nossos olhos e ouvidos como se fôssemos testemunhar aqueles duelos lentos e catárticos em sua lateralidade ampliada e seus acordes progressivamente mais intensos - pois, logo tudo se volta para a representação e o dialoguismo sobre a ação, a intervenção narrativa sobre o desenvolvimento dramático, e os grandes planos exteriores dão lugar para os supercloses em ambientes fechados.

Se no western tradicional vemos o exterior e o céu aberto como lugar de ação, onde os problemas de foro ético e social dos protagonistas serão resolvidos (enquanto sua razão psicológica se dará nos interiores), Os Oito Odiados mistura política e intimidade em um lugar de pouca escapatória. Onde todos os tiros são fatais, cada bala que acerta deixa um rastro, cada rastro e cada disparo vão fazendo a cenografia somar em sujeira. Foro íntimo e foro público estão confusos em Os Oito Odiados; crenças pessoais interferem diretamente na questão de sobrevivência; níveis de tolerância dramática entre os personagens - da amistosidade à hostilidade - guiam a escala de suspense do filme e a maneira como recebem informações. Como instrumentos em uma orquestra, cada elemento ali está sendo tocado em algum ponto, em algum momento, com alguma cadência e harmonia. Debaixo do teto, o western é desmanchado em nome do thriller, simplificando a questão do bandido contra o fora-da-lei em pouquíssimos e centrais detalhes de disputa e perseguição.

Carnaval intenso de efeitos especiais gore, o ato final de Os Oito Odiados muda a expectativa de resolução de desenvolvimento de personagem a todo momento; cobre já praticamente todos os atores e objetos de cena com sangue falso e agrava de forma progressiva o desenlace de seus jogos de expectativas criados, esticados e recriados de maneira cada vez mais sarcástica pelo diretor - perceba como o filme tem um uso “feio” de câmera lenta, não centrados na beleza de movimentos acrobáticos quase impossíveis, mas em pequenas reações, esticando sons aos limites do cômico, dilatando o tempo naquele espaço apertado de maneira desconfortável. Sabendo que aquilo ali pode acabar a qualquer momento, estica-se a nossa percepção do tempo até o limite da tolerância. Tudo em nome do efeito impactante e bruto, da criação de uma atmosfera extenuante e degradante, onde o lado operístico de Morricone nunca foi significado de maneira tão pouca operística.

Tarantino nunca criou um cenário tão perturbador e estressante para desmistificar conceitos e ideais políticos e estéticos; nunca fez tanto por onde para criar a atmosfera geral de perigo espontâneo e ironia ácida; esforçou-se especialmente para usar seus personagens dramaticamente “chapados” em suas atitudes (todos tem falhas de caráter incontornáveis e quase caricaturais) para crivar mais e mais pequenos estímulos de tensão e riso nervoso aqui e ali.

Over-the-top, de mau gosto, excessivo, grotesco e ridículo, Os Oito Odiados é um daqueles momentos que Tarantino chega ao limite do seu cinema, forçando ao máximo seus limites como autor, quase como se o que dominasse exemplarmente ainda não fosse o suficiente. Se Bastardos era um ataque frontal às mesmas estéticas de sempre e um convite à reinvenção e novas concepções, os Odiados são um terremoto nas estruturas mais firmes do cinema do diretor - a criação referencial do avesso, discursando política e esteticamente para além de sua caracterização planejada e típica (sempre podíamos esperar tensão em interiores - a lanchonete em Pulp Fiction, o duelo final de Kill Bill Volume 2, a abertura de Bastardos Inglórios - mas nunca sendo o mote principal do filme) experimentando de novo e de novo o mesmo efeito com diferentes intenções e desenlaces, conjugando de uma vez só basicamente todas as técnicas visuais e dramáticas que já experimentou alguma vez em nome de um cinema revoltado, angustiado com as suas barreiras (sociais, estéticas, e temáticas), beirando a histeria completa por boa parte da projeção. Tarantino mais Tarantino do que nunca.

Comentários (7)

Júlio César Filho | segunda-feira, 25 de Janeiro de 2016 - 19:34

Crítica excelente! Realmente é o filme mais perturbador do Tarantino. Senti um profundo mal-estar como nunca tinha sentido assistindo os outros filmes dele.

Araquem da Rocha | quarta-feira, 27 de Janeiro de 2016 - 01:04

Parabéns Brum!
Nessa crítica(excelente)mostra como Tarantino amadureceu como diretor.

Victor Santos Lima | quarta-feira, 27 de Janeiro de 2016 - 14:28

Que texto, Brum! Será este um Tarantino se preparando para o o final?

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