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Críticas

Cineplayers

Um filme complexo e cheio de conteúdo, que tem uma visão forte do relacionamento entre pai e filho.

7,0

No projeto de vida dos pais, os filhos sempre estarão presentes. Ironicamente, anos depois, quando esses mesmos filhos se tornarem pais, vão perceber que será a vez deles serem descartados pelos seus descendentes. O círculo vicioso que se forma é uma das muitas imponderabilidades da vida, fonte geradora de eternos conflitos familiares. Esta parece ser a idéia que atravessa e resume Pai e Filho, o novo filme do russo Alexander Sokurov.

Após ter lançado, em 2002, o virtuoso Arca Russa, experiência inédita de filmagem de um longa-metragem num único plano-sequência, Sokurov virou o queridinho da crítica mundial e figurinha carimbada nos principais festivais de cinema. Aos 55 anos, o diretor já possui mais de 30 filmes no currículo (entre eles alguns curtas e documentários), a maioria sem distribuição internacional. Quase sempre comparado com seu compatriota Andrei Tarkovsky, morto em 1986, o estilo e a temática central de Sokurov se aproxima também de outros dois cineastas: o grego Theo Angelopoulos e o sueco Ingmar Bergman. Planos longos e contemplativos, narrativas lentas, construídas à base do olhar dos personagens, uso funcional do silêncio como parte integrante da trama. Definitivamente é um tipo de cinema que não é para todos os gostos. Exige do espectador mais do que ele está acostumado e disposto a dar. Não fosse por esse motivo, ao menos por ser um artista que tem algo a dizer, Sokurov merece uma atenção – e dedicação – especial do público interessado em cinema como arte diferenciada.

Sokurov transita com naturalidade entre os macro e o micro ambientes. Com o fim do regime comunista, sentiu-se à vontade para dissecar e desmistificar a vida de alguns líderes do passado. Foi o que fez com a trilogia iniciada com Moloch (1999), que acompanha um dia na vida de Hitler, Taurus (2001), uma controversa visão de Lênin, e Sol (2005), seu último filme até o momento e que foca suas lentes na vida do Imperador Hiroito e seu acordo diplomático com o General MacArthur, logo após a derrota do Japão na 2ª Guerra Mundial.

Mesmo diante destes temas épicos, Sokurov não perde de vista o micro espaço, o detalhe, a narrativa que privilegia o interior dos personagem ao invés da grandiosidade da história. Essas características aparecem em abundância em outra trilogia, ainda em curso, iniciada em 1997, com Mãe e Filho e retomada agora com este Pai e Filho. Pelas pretensões de Sokurov, o terceiro capítulo, batizado com o nome de Dois Irmãos e uma Irmã, já esta a caminho.
 
Em Pai e Filho, Sokurov lança seu olhar para o interior de uma família russa numa época indefinida no tempo. Dela participam o pai (Andrei Shchetinin), um homem beirando seus 40 anos, reservista do exército, viúvo e portador de um câncer terminal nos pulmões, e Aleksei, seu filho adolescente (Aleksei Nejmyshev), também iniciando seus aprendizados na carreira militar. Ambos demonstram uma afeição comum que extrapola o amor natural de um ascendente pela sua cria e vice-versa. Eles se tocam constantemente, trocam intimidades, não permitem que elementos do mundo exterior tenham acesso a este universo.

Apesar de jovem e atlético, o pai mostra-se uma figura apática e fraca. Seu cotidiano limita-se a esperar o retorno do filho da escola militar para com ele dividir uma refeição ou apenas algumas palavras. Por vezes, na falta de um receita melhor, vai até à academia ver Aleksei treinar com os colegas. Evita aceitar uma proposta de emprego mais rentável, já que a opção implica numa maior distância de seu rebento. Apesar de pouco à vontade com o esporte, deixa-se ser aluno do filho nas peladas de futebol. Quando o adolescente sonha, a primeira preocupação do pai é saber se ele está inserido nesses pensamentos inconscientes. Invertendo a ordem natural das coisas, é o pai que, como se estivesse preso ao filho por um invisível cordão umbilical, resiste a alçar vôos por conta própria e assumir as responsabilidades da própria vida.

Por sua vez, Aleksei mostra uma atitude ambivalente em relação ao seu pai. Ao mesmo tempo que aparenta ser maduro o suficiente para entrar na fase adulta da vida, tem dificuldades para se livrar do amor paterno. Os relacionamentos com a namorada, amigos de escola e vizinho de janela, não vão longe porque, conscientemente ou não, a figura do pai sempre tem prioridade. É como se nenhuma dessas pessoas fosse capaz de superar as qualidades físicas, sentimentais e pessoais de seu ascendente.

O conteúdo homossexual e incestuoso pode incomodar a platéia. Quando exibido no Festival de Cannes, o diretor se irritou com as perguntas dos repórteres a este respeito. Achou que imprensa distorceu a análise do filme, na medida que destacou alguns de seus aspectos menos importantes. Contudo, é impossível dissociar Pai e Filho desse contexto.

Logo na primeira seqüência, Sokurov nos coloca diante de dois corpos masculinos se debatendo. As imagens são distorcidas e a impressão inicial é de uma briga. Com o desenrolar da cena e os gemidos que passamos a ouvir, a sensação é que estamos vendo dois homens no curso de um ato sexual. No último plano antes de se revelar a verdade, o cineasta fecha sua câmera numa boca aberta, emitindo um som abafado, que pode muito bem ser entendido como um orgasmo (ou até mesmo como um orifício anal). Ao abrir o ângulo por completo, percebemos que aqueles corpos musculosos são o de um pai, numa posição tipicamente materna, embalando seu filho, que acabara de acordar de um pesadelo.

Esse ambiente erótico vai ser algo constante ao longo do filme. A fotografia esmaecida que ilumina o interior da casa, em tons marrons e verdes, contribui para o clima. No exterior do recinto, o céu é mostrado num constante amarelo crepuscular. Os movimentos lentos de câmera (marca típica do diretor) e os planos estáticos priorizam os olhares e os gestos. Ao fundo, a trilha sonora é composta quase que exclusivamente como temas tirados de Tchaikovsky.

No entanto, qualquer análise que se limite a destacar tão somente o seu conteúdo homossexual estará  sendo injusta com o filme. Como sempre, Sokurov trabalha fortemente o lado psicológico de seus personagens. E aqui sim estão os aspectos mais interessantes da história.

Muito mais que um pedófilo ou gay, o pai é um homem solitário. A perda da esposa o transformou numa pessoa carente de afeto externo. Talvez pior que isso, a solidão fez com que ele mantivesse represado todo o amor dentro de si. Todo esse sentimento acabou canalizado para o filho. Seu olhar para o garoto é mais terno do que lascivo. Contém mais carinho do que tesão. É como se ele visse no rapaz a figura da própria esposa. Ou, em outras palavras, como se transportasse para o filho todo o amor que sentia pela sua amada. O relacionamento é o seu próprio alimento. É o amor e a retribuição desse amor. O rompimento desse vínculo significaria, simbolicamente, reviver a experiência da morte da sua esposa e, simultaneamente, e interromper a sua fonte de vida.

Por sua vez, Aleksei parecer ter consciência do poder que exerce sobre o pai. Elogia seu porte físico e seu sorriso. Como se exibisse a uma garota, o rapaz demonstra para o pai sua destreza nas lutas com os colegas de academia. Sacrifica o relacionamento com sua namorada, que não concorda com tamanha intimidade entre ambos. Faz chantagem emocional, quando o pai ameaça aceitar um emprego distante. Talvez por saber sua condição de saúde, talvez por querer suprir sua solidão, o filho se mantém sempre ao alcance do pai. No entanto, nos seus sonhos, o pai não mais aparece. No inconsciente, o filho já encontrou um caminho, simbolizado pela estrada de terra que se prolonga ao longo de um bosque num dia chuvoso. Seu destino já está traçado. Seja através de uma reconciliação com a namorada, seja com o filho de um ex-combatente de guerra, amigo de seu pai dos tempos de exército.

“O amor de um pai crucifica e um filho amoroso deixa ser crucificado”, diz a professora de Aleksei. O filho repete a frase para o pai, mas sem entender direito o significado.  Sokurov parece querer demonstrar que a sua visão da relação entre pai e filho é algo que se aproxima do sagrado. Além destas frases pretensamente soltas, o diretor trabalha inteligentemente a disposição espacial de seus personagens. Pai e filho moram num sótão. Volta e meia se exercitam nos telhados dos prédios ao redor. São engolidos pelo pôr-do-sol avassalador que invade suas janelas. Brincam perigosamente sobre estrados de madeira que unem os últimos andares das casas. Em suma, estão perto do céu. Sokurov os coloca aos pés do criador, que, por sua vez, um dia, também já foi pai. Pai, Filho e Espírito Santo.

Desta posição celestial, os protagonistas ocupam um ponto de vista privilegiado. Observam as pessoas logo abaixo. A partir desta verticalidade, Sokurov envolve-os numa espécie de aura etérea, transformando-os em seres próximos do sublime, do angelical, objetos assexuados que se encontram acima de meros julgamentos morais. O diretor, no entanto, não os infantiliza muito menos simplifica a trama. Não vemos o pai e o filho vestindo auréolas imaginárias, que os isentariam por todos os erros cometidos. Antes disso, Sokurov faz questão de expor seus defeitos, fragilidades, inseguranças, desejos etc. Essas dualidades entre o sagrado e o humano, o divino e o terreno formam a espinha dorsal deste Pai e Filho.

Sem dúvida um filme realizado para públicos mais exigentes, Pai e Filho provavelmente precisará ser visto mais de uma vez. Por trás de uma pretensa simplicidade, o espectador encontrará várias camadas de compreensão. Ao final, todas as leituras são admitidas, até porque Sokurov não se prende na mesmice de fazer uma obra fechada (como se observa, por exemplo, pelo simbolismo da seqüência final). De uma coisa, no entanto, é impossível escapar: a constatação de que se está diante de um obra rica em conteúdo, de difícil degustação e dirigida por um dos mais importantes cineastas da atual geração.

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