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Críticas

Cineplayers

A morte como imagens: quais os limites da representação?

8,5

O crítico de cinema francês André Bazin defendia que a representação da morte real no cinema constitui uma obscenidade, pois é impossível representá-la sem violentar a sua natureza – ou seja, sem tornar um momento único no tempo passível de reprodução infinita na tela. Óbvio que ao falar de “morte real” Bazin restringia-se ao campo do cinema documentário. Ainda assim, essa objeção nos parece bastante pertinente para pensarmos sobre a ficção alemã Parada em Pleno Curso (Halt Auf Freier Strecke, 2011).

No filme, acompanhamos os últimos meses de vida de Frank: casado, pais de dois filhos, feliz e, até o momento, completamente saudável. Na cena inicial Frank e sua esposa Simone recebem o diagnóstico de que ele está com um tumor maligno e inoperável no cérebro, restam-lhe apenas tratamentos paliativos e a certeza de que sobra muito pouco tempo de vida pela frente. A partir daí Frank, sua esposa, seus filhos de 14 e 8 anos, amigos e parentes próximos passam a lidar com a morte como uma constante próxima.

Partindo dessa premissa fatal e inevitável, nos questionamos sobre como e porque representar no cinema os últimos meses de um doente terminal. Como não transformar a morte em espetáculo ou peça de um melodrama insuportável de quase duas horas? Por que representar o que pode cair na obscenidade das imagens que atravessam os momentos mais íntimos e dolorosos da experiência com a morte?

Desde o início, o filme adota uma representação dura e crua. Não há lugar para o melodrama, ou escapismos líricos. O registro ampara-se em imagens limpas, quase como um documentário observativo do cinema direto. Parada em Pleno Curso encara os seus personagens de frente, com uma câmera próxima, sem muletas de trilhas sonoras ou tratamento de imagens. Nas brigas, no choro, no afeto, nos eventuais desesperos ou alegrias, a câmera mantém-se ali, garantindo o lugar do espectador dentro daquele drama – mas sem cair no voyeurismo ou apelar para algum tipo de sensacionalismo barato. As passagens acontecem lentamente, à medida que o tumor cresce e Frank perde cada vez mais o controle sobre o próprio corpo.

São raras as exceções para essa crueza. Uma delas se dá nos delírios midiáticos que o personagem tem sobre a sua doença, quando ao assistir televisão ele vê no convidado de um talk show o seu tumor falando sobre a sua progressão e a deterioração da saúde de Frank. Seu tumor também toma conta do noticiário da rádio – e, de vez em quando, aparece para deitar-se em sua cama ou substituir sua imagem filmada ou refletida no espelho. Ainda assim, o humor dessas cenas é de uma lucidez cortante – mais do que no terreno dos sonhos, estamos adentrando na incapacidade crescente do personagem de racionalizar os pensamentos e a realidade a sua volta. Tudo está literalmente tomado pela doença, até as projeções mentais.

Talvez o maior escape do filme esteja nas imagens pixeladas produzidas pelo Frank com o seu celular: a mulher, os filhos, a casa, a vizinhança, a loja de ferramentas, o personagem parece não querer abrir mão de nenhum detalhe. É com esse mecanismo também que ele se filma e faz pequenas observações, que mais do que legado funcionam como um divã – no qual se pode pensar sobre as oportunidades desperdiçadas ou fazer piada de humor negro sobre a morte. Contar-se a si mesmo como a última e única forma ainda possível de cuidado de si. É preciso lutar contra o tempo e produzir o seu próprio inventário imagético. Ou talvez fazer o tempo dobrar, torná-lo repetitivo ao infinito para concorrer com a morte – que como já disse Bazin, só pode existir no tempo uma única vez.

O porque nos vem aos poucos, no projeto quase pedagógico do filme de destraumatizar a morte – de tornar sua representação possível e não obscena. O médico frio e objetivo da primeira cena é substituído por uma médica mais atenciosa, que atende Frank em sua casa na fase final da doença. Mais do que a Frank, é a Simone a quem essa presença ajuda insistindo na necessidade de levar aquele processo até o fim, por mais doloroso, feio e sem esperança que ele seja. Resta ao espectador ficar ao lado da personagem e também não desistir da empreitada a partir dali. Se de fato há lugar para a morte como imagem no cinema sem trair sua natureza, fica evidente que ainda não mais traumática, essa representação segue acima de tudo dolorosa.

Visto no 14º Festival do Rio

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