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Críticas

Cineplayers

Depois da Revolução.

8,0
A maioria dos filmes de Bernardo Bertolucci ficaram datados com o tempo, até o momento em que ele próprio passou a dirigir filmes natimortos. Um vigoroso período em sua carreira permanece o da década de sessenta. Filho de poeta, ele próprio pertencia a uma geração excessivamente livresca. Em Partner (idem, 1968) existem livros em profusão nas mãos dos personagens ou espalhados por espaços fechados ou em toda parte. Um período em que se aproxima de clássicos literários insuspeitos e de caráter universal para transpô-los a sua época e expressar acerca do seu tempo.
Antes da Revolução (Prima della Rivoluzione ,1964) extraia seus personagens diretamente de A Cartuxa de Parma, de Stendhal, para tratar dos embaraços e crises de consciência dos revolucionários de salão, hoje metamorfoseados nos ativistas de sofá, encontrados especialmente nas redes sociais. Aqueles que muito bradam e pouco agem, sonhando com a possibilidade de mudança do individuo e da sociedade, enquanto testemunham e sofrem na epiderme e na alma as consequências advindas das transformações que a economia e a tecnologia nos impõem. 

Partner sugere um Depois da Revolução. Uma revolução que pode ter acontecido e se encerrado com um suspiro ou num piscar de olhos, restrita a um passado que sugere proximidade e ao mesmo tempo soa tão distante. Vítima de forças entrópicas dissolventes que sempre existirão no entorno. Ou então a revolução estar acontecendo e com ela mal se sabendo lidar, num caráter entre o concreto e o alucinatório. Partner relê ao seu modo e livremente uma das mais densas novelas psicológicas de Dostoievski, O Duplo, e nos vemos defronte de um dos limites finais do cinema de Bertolucci em matéria de ousadia e liberdade formal. 

Se quem não viveu os anos antes da revolução não pode compreender o que é a doçura da vida (a citação de Tayllerand que deu origem ao título do filme anterior), o que remete a tempos bucólicos e de paz, anteriores à Queda, tempos de inocência e de infância; em Partner, os personagens já se mostram incapazes de compreender qualquer doçura, e o que lhes restam são a loucura e a agitação interiores e exteriorizadas. Viver numa duplicidade, num estado de fragmentação. E buscar, de algum modo, unificar os próprios conhecimentos, e dentro do possível, alguma constância e coerência na sua conduta de vida. Uma figura esguia, jovem e bonita, mas corcunda, arqueando as costas como que o defeito físico a representar as deformações da psique, e a fazer gestos de terror na mesa de um café a imitar Mr. Hyde em uma de suas versões cinematográficas, ou um Caligari. Este é Giacobbe (Pierre Clementi) e seu sósia ou duplo de si mesmo. 

Jovem professor de teatro, Giacobbe é outro daqueles revolucionários de salão. Imbuídos de idéias ideológicas contestadoras e teórico em excesso, além de apaixonado por uma bela burguesa (Stefania Sandrelli). Esconde-se atrás de um muro literalmente erguido de livros. Começa a conversar com ele próprio e é o seu duplo tomado pelo atrevimento e superação da timidez, pelos impulsos sexuais, agressivos e destrutivos que enquanto professor em nenhum momento se sentiu capaz de colocar para fora, é o seu duplo que vai conferir asas à sua consciência e imaginação. E se aproximar da moça e se reunir aos alunos seus para concretizar um teatro pelas ruas de Roma com ares de manifestação popular e política (“Nós somos a favor da alegria, da graça e da felicidade”). Dialoga-se sobre a transformação da matéria e experimentam a fabricação de explosivos caseiros.

Realizado em meio ao maio de 1968, novas ideias eram incorporadas na experiência de encenação deliberadamente improvisada de Partner a partir dos eventos em torno das insurreições estudantis em solo francês e seus slogans (“É proibido proibir”). No entanto, Partner permanece coerente para manifestações revolucionárias e quimeras culturais de todas as épocas; se há filmes que inegavelmente envelhecem com o transcorrer dos anos, outros já nasceram datados, com o que há de mais caduco nas representações e símbolos que colocam em xeque, condenados a se repetir frequentemente ao longo dos tempos. Em toda manifestação política há algo de teatro e mesmo de farsa. Além de um triunfo cênico como poucos em se tratando de Bertolucci, com sombras menores e maiores se projetando expressionistamente tanto em espaços fechados quanto em calçadas e prédios nas ruas. E em um mundo que nos sugere uma mistura de ordem e caos, em Partner se mostra um caos narrativo que é só aparente (aliada à ótima e adequada trilha sonora de Ennio Morricone). E que reflete esse mundo em que a ordem predomina, mas com um coeficiente de caos e absurdidade que é inerente à própria constituição do universo e de uma obra de arte transgressora, sem perda do que o filme possui de cinematograficamente mais coeso. Um universo de um jogo de possibilidades sempre em aberto, mas no qual as possibilidades que se realizam excluem outras possibilidades, e nem sempre as possibilidades que se realizaram são aquelas que combinariam para o progresso do individuo.

Político e godardiano, faria uma bela sessão dupla com A Chinesa (La Chinoise, 1967), com as suas cores quentes e vivas e igualmente aprisionadoras, especialmente o vermelho. Tanto um filme existencial sobre a divisão da personalidade quanto um perfeito espelho de seu tempo, do dilaceramento, incertezas e esquizofrenias da juventude engajada de 68, muito longe de qualquer idealização que corra o risco de se chamar de ingênua. Os melhores filmes a praticar uma crítica lúcida e positiva da esquerda foram concebidos por diretores de esquerda, como um dia o foi o comunista e então verdadeiramente jovem Bernardo Bertolucci, que declarou que Partner era sobre a impossibilidade de os intelectuais fazerem a revolução. O próprio Bertolucci se mostraria mais tarde cindido, voltando às costas ao seu lado vanguardista. E tal como muitos dos estudantes das manifestações de 68 que depois se converteriam em executivos e em reacionários da pior espécie, enquanto cineasta se revelando cheio de concessões e irregular ou francamente ruim, retornando ao maio de 68 com Os Sonhadores (The Dreamers, 2003), um acerto de contas com sua má consciência, e ai sim, um filme ingênuo, fetichista, ultrapassado e burguês; se naqueles primeiros filmes dos anos sessenta havia uma vitória da ética sobre a estética (com escolhendo a primeira, a outra podendo ser encontrada no fim do caminho), em Os Sonhadores existe uma opção pela estética, no sentido de uma escolha pelo reino das aparências, pelo que de mais bonito e enganoso, para que a outra então fosse jogada para o espaço. Alguns realizadores também se deixam devorar por um duplo de si mesmo. Partner, entretanto, assinala o que de mais raivoso, experimentalista e eminentemente político o seu autor pôde oferecer um dia. 

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