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Críticas

Cineplayers

Mãe, filha e o tempo.

6,0

Gregg Araki traz para seu filme o antagonista mais brutal de todos: o tempo. Diante de nós, ele expõe um duplo particular: o velho e o novo. Duas faces da mesma moeda, lançada ao ar segundo após segundo num jogo de apostas diabólico ao qual o homem se submete a todo momento. Eve Connors está envelhecendo e sua filha, Kat, está na adolescência fluorescente.

Mãe e filha duelam, ferozes, dia após dia, demarcando cada vez mais evidentemente que a força avassaladora do tempo é capaz de obscurecer as ideias das mentes mais sãs. Para Eve, o momento é de lamúria, de refletir em toda a vida desperdiçada. Ao olhar para seu redor vendo o que construiu, a dona de casa não sente nada além de arrependimento.

Para Kat, o tempo não parece existir. Após suportar uma puberdade hostil, num corpo disforme e irreconhecível, a garota floresceu para a vida adulta, magra, peituda e impecável. Kat domou o tempo, está por cima dele, como um caçador ingênuo posando para fotos em cima de uma besta atordoada.

A manifestação recorrente do tempo em O Pássaro Branco na Nevasca acontece nos sonhos de Kat - é a neve caindo. Silenciosa e sedutora, soterrando pouco a pouco quem está por baixo, no caminho. Eve nunca teve nenhuma chance. Desde o começo do filme, ela já estava nua, adormecida no chão, os flocos de neve cobrindo cada vez mais seu corpo delicado. Enquanto isso, Kat assiste à cena, num misto de admiração e impotência, sem prestar muita atenção no fato de que neva ao seu redor também.

Quem tem coração deve se lembrar de uma das cenas mais desconcertantes daquela que ainda é a obra-prima de Gregg Araki, Mistérios da Carne: um aidético contrata o garoto de programa-protagonista por uma noite, apenas para que seja abraçado. Embora as temáticas de Mistérios da Carne sejam bastante diferentes, é possível refletir que o afeto (mais precisamente a falta dele) também motiva muitas ações vistas em O Pássaro Branco na Nevasca.

A imagem de um pássaro branco numa nevasca também nos remete a uma ideia de solidão e invisibilidade. Solidão, carência e o tempo passando, explicações possíveis para que essa mulher, Eve, pudesse achar que não está mais no seu prime. Eva Green já não tem mais as curvas impecáveis imortalizadas por Bertolucci em Os Sonhadores, mas permanece como uma das mulheres mais bonitas do mundo.

Mas entre os olhos que fitam e a imagem que reside no espelho, existe a percepção. E a percepção de Eve estava desordenada. Uma dona de casa solitária, cada vez mais alcoólatra, desembestando em direção a um caminho sem volta, marcando tragicamente a vida de sua família.

Infelizmente, porém, o filme de Araki não é sobre Eve Connors. Não que Kat Connors seja uma má personagem, mas a potência mágica no filme existe quando Green e Woodley contracenam, juntas, construindo de um jeito absurdo e levemente surreal o mosaico que compõe a relação de mãe e filha.

Os outros caminhos da história, os personagens coadjuvantes extremamente subservientes à protagonista, o terceiro ato insultante... Nada disso me parece digno de nota, digno de menção. Melhor é acreditar que todo esse resto de fato não existe, e que Pássaro Branco na Nevasca é uma história curta sobre uma mãe e filha que, abraçando-se e repelindo-se ao mesmo tempo, escorregam juntas em direção à tragédia.

Comentários (1)

Pedro H. S. Lubschinski | sexta-feira, 29 de Janeiro de 2016 - 11:22

Gostei mais do filme que tu, Bakunin (ou nem tanto, vai saber, já que o texto faz parecer que você gostou tbm e a nota é só nota), mas não posso deixar de pensar que esse texto é foda demais e se encaixa muito bem no filme

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