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Críticas

Cineplayers

Fecundar o mundo pelo ponto de vista.

9,0

Noite na cidade, os olhos na calçada. Um sujeito assovia uma melodia qualquer e dá meia dúzia de passos que a câmera, indiferente, logo desiste de acompanhar; acha mais interessante olhar a chuva que foge pelo bueiro junto ao meio-fio enquanto o homem atravessa a rua sabe-se lá pra onde. Em seguida surgem os créditos colados num plano lateral que acompanha o trajeto seco e displicente até a delegacia. Assistimos sem compreender ainda o porquê do silêncio, da dureza do contraste ou da melodiosa combinação de ruídos de trânsito com a rouquidão fria do radiofrequência da polícia. É Preminger nos contando coisas no idioma secreto das cidades. Em Passos na Noite, é mais à inanimação aparente dos objetos do que à aparente animação dos homens que o cineasta se atém. O espírito da cidade levanta-se como uma legião de inquisidores, e ‘certo e errado’, dicotomia tão ignorada no film noir, é eleita dilema que governa a narrativa.

Logo descobrimos que Dixon (Dana Andrews) estava se dirigindo à cerimônia de promoção de um colega, um homem que começou na polícia ao mesmo tempo que ele. Dixon, ao contrário, se atrasa e é comunicado de que, por reincidência em abusar da força em serviço, está sendo rebaixado de patente. Volta-se mais uma vez à figura do homem-portador do estigma do fracasso, perdido entre a piedade de uns e a decepção de outros.

É estranho falar agora de Passos na Noite sem retornar à mesma dinâmica que rege Anjo ou Demônio? (Fallen Angel, 1945), com o foco porém mais na problemática moral do que na própria instância do amor enquanto instrumento de resgate. Correndo o risco de me fazer repetitivo, não há como deixar de abordar a figura do herói premingeriano como o homem que, embora nasça unidade, é clivado pelas linhas aleatórias da vida. No filme de 45, Eric (o mesmo Dana Andrews) não sabe e nem permite ao público saber se ele é um vilão dissimulado ou apenas um bom homem que precisa de ajuda. Preminger aborda o tema sem preocupar-se em responder à pergunta do título nacional; ao contrário, o filme procura ratificar a tendência do gênero para ignorar a questão. Em Passos na Noite, por outro lado, responder a esta pergunta é o que atormenta e o que motiva todas as ações do protagonista. Se no noir clássico o apagar da linha que separa o “anjo” do “demônio” é componente essencial da sua atmosfera, aqui é pela oposição dessa ideia que a narrativa se baliza. Para que um problema como este fosse compreendido pelo espectador (como antídoto a esta violação da fórmula original), Preminger entendeu que precisaria amplificar em muito a intimidade entre público e personagem.

Nenhum outro segmento do cinema foi capaz de produzir filmes amargos como o velho noir porque o horror silencioso oculto em cada banalidade e a relação de cumplicidade entre personagem e espectador são fundamentos do gênero. Seja pela solidão ou pelo desespero, Otto Preminger, Fritz Lang, Jacques Tourneur e outros diretores do gênero isolam de tal modo seus protagonistas que sempre chega este momento capital do filme em que percebemos finalmente: estamos todos sozinhos. A noite em claro no quarto da delegacia sob a vigília das luzes dos edifícios e os planos fechadíssimos de Dixon enquanto ele confessa seus pecados a um pedaço de papel são cenas-chave dessa aproximação, reforçada até que passemos a sentir coisas que, pela distância usual entre público e diegese, passariam sem efeito. É por isso que a relação do espectador com a ação que transcorre em Passos na Noite não é uma relação normal. O drama de Taylor (Gene Tierney), por exemplo, por mais poderoso em teoria, não consegue se fazer autônomo; sua função é tão somente dar intensidade ao drama de Dixon, porque neste momento a fato algum é garantido o direito da imparcialidade. Há qualquer coisa de sussurro e de confidência nessa relação que leva o público a adotar Mark Dixon e a cuidar dele como uma mãe cuida de um filho, ignorando qualquer falha de caráter, sacrificando inocentes em seu benefício, colocando-se entre ele e o cadafalso nem que para isso o mundo inteiro saia desafiado.

A preocupação moral, tão irrelevante em qualquer outro noir (assim de cabeça me lembro de Mortalmente Perigosa [Gun Crazy, 1950] e mais nenhum outro), é a força-motriz de Passos na Noite — mas não compartilhamos dela em si, apenas de seus efeitos, como um McGuffin qualquer. É sob o filtro do dilema de Dixon que todos os outros nós narrativos (a morte por acidente, a prisão de um homem inocente, a caça e a fuga para cobrir rastros) são contemplados, é a essa distorção que cada movimento e cada ângulo se entregam, e Preminger sabe que as imagens, a partir deste momento, deporão todas contra este espectador já fundido ao personagem.

É por isso que o desamparo tem textura em Passos na Noite, tem forma, e é a forma do metrô que atravessa vazio a madrugada, das pessoas sem rosto que lotam as ruas feito fantasmas e da onipresença da cidade enquanto cúmplice e entidade sempre alerta, sempre à espreita num beco ou observando por uma janela enquanto alguém chora sozinho no breu de um quarto abandonado. Preminger não constrói um universo urbano tão plástico e rico em detalhes pra cada cena parecer uma tela de Hopper que ganhou vida. A beleza em Passos na Noite é funcional, é uma lâmina. Todo enquadramento oferece o homem como presa ao cenário que ou o engole entre seus objetos ou o vigia à distância. Tome por exemplo a miragem oblíqua da cena em que Dixon esconde o corpo no porta-malas: como a escuridão da cidade parece derrubar-se inteira feito ponte levadiça sobre a câmera.

Sammy Dixon’s kid” é a frase que esclarece essa opressão, que emprenha essa realidade. É quando descobrimos que Dixon (ao contrário do que nos parecia na primeira cena após os créditos) não é um fracasso simplesmente, porque o fracasso nivela os homens, torna-os entes invisíveis e assimilados pela nuvem abstrata da multidão. Dixon gostaria mas não se sente invisível, muito pelo contrário: ele não se encaixa nesta unidade antropomórfica que é a liga urbana formada de prédios, estátuas e gente anônima, por isto ele sente-se acusado por todos em cena (o mundo – deidade maligna – contra um só homem, e o espectador entre eles), sente-se indigno de viver e vê apenas na própria morte a possibilidade de libertação. Arrastar-se pelas ruas de uma Nova York podre em seus patamares mais íntimos e vasculhar nas entranhas dessa cidade, pelas mesmas sarjetas e pelos mesmos clubes de pôquer que seu pai frequentou, parece o único modo de mantê-lo suficientemente distante. Dixon precisa estar no coração do sistema que seu pai ajudou a corromper para ter certeza, um dia após o outro, que é diferente dele, ainda que as constantes agressões (e por fim, a morte de um inocente) o convençam do contrário, porque o mudo conluio das coisas que o rodeiam tem seus recursos, tem seus talentos pra se amotinar, como se movendo o ponto de vista um pouco para a esquerda ou para a direita Preminger descobrisse fendas para perspectivas que revelam o terror assimilado no cotidiano. É nesta dimensão que Dixon vive, perdido nesse ângulo onde o olho confere vida a todas as coisas.

Portanto nada mais certo que, na cena da redenção, ele consiga sorrir somente depois que ela lhe diz, como quem absolve um prisioneiro, “anybody can make a mistake”. Não ao entregar a carta com a confissão, não ao ouvir que tudo ficaria bem ou que todos acreditariam nele. Dixon estava cansado de argumentos e apelos, de esforços motivados por indulgência. Ele sorri porque “anybody” consegue o que nenhum estado de felicidade fictícia arranjada de tão boa vontade por seus amigos jamais conseguiria: tomar o lugar de “Sammy Dixon’s kid” repetido pra si mesmo e indefinidamente como uma maldição, motivo pelo qual a fuga começo (não na noite do acidente, mas há mais de 20 anos).

Não deixa de ser bonito, não é? Pessoas ao seu redor te conseguindo mulheres, oportunidades, te julgando por tê-las frustrado, por ser um fracasso, um nada; bolando mil formas de consertar a sua vida enquanto tudo que você mais quer é que alguém apareça pra lhe dizer, sem medo ou gratuita compaixão, que você é só um cara como qualquer outro, te devolvendo enfim à argamassa de sombras que ergueu o sistema. Uma vez mais é noite na cidade, os olhos na calçada.

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