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Críticas

Cineplayers

Mais que um filme de guerra, é um dos mais fascinantes estudos de personagem feitos pelo cinema norte-americano.

8,0

Uma gigantesca bandeira norte-americana repousa estática, tomando quase todo o quadro. Lentamente, um homem com uniforme do exército surge em tela, quase minúsculo diante da imensidão do estandarte atrás de si. Firme, orgulhoso de usar aquela vestimenta, o soldado saúda seus interlocutores. Sem hesitar, inicia um discurso de mais de cinco minutos a uma plateia jamais exposta, demonstrando a sua visão sobre a guerra e sobre o próprio exército norte-americano, sem medo de utilizar palavrões ou frases de impacto, como: “Nenhum desgraçado jamais venceu uma guerra morrendo pelo seu país. Venceu fazendo o outro desgraçado morrer pelo dele”. Após seu sincero e apaixonado monólogo, o soldado se retira mais uma vez, deixando novamente a bandeira dominar toda a tela.

Assim, de forma magistral, tem início Patton – Rebelde ou Herói? (Patton, 1970), um dos maiores vencedores da história do Oscar, dono de nada menos que oito estatuetas, incluindo melhor filme, diretor, ator e roteiro. Cinebiografia de um dos mais controversos generais norte-americanos da 2ª Guerra Mundial, responsável por memoráveis campanhas no norte da África e na Europa, Patton – Rebelde ou Herói?, na verdade, mais do que um exemplar filme de guerra, é um dos mais belos estudos de personagem já realizados pelo cinema norte-americano. A obra de Franklin J. Schaffner – cineasta por trás do primeiro e clássico Planeta dos Macacos (Planet of the Apes, 1968) – é lembrada ainda hoje não por sua trama ou por retratar batalhas da maior guerra do último século, mas sim por construir de forma quase impecável um personagem verdadeiramente fascinante, tornando-o real, tridimensional e instigante até mesmo para plateias atuais – e, hoje, já são contados 42 anos desde o lançamento do filme.

Nesse sentido, o primeiro grande mérito de Patton – Rebelde ou Herói? cabe ao roteiro de Edmund H. North e de um então novato Francis Ford Coppola (o filme rendeu o primeiro Oscar da carreira do cineasta que se tornaria a maior referência autoral dos Estados Unidos na década de 70). Inteligentes, os roteiristas e o diretor acertam ao não tentarem condensar a história da vida de Patton nas três horas da produção, preferindo focar em um período específico de forma a capturar a essência de quem era aquele homem. Assim, o filme evita o erro comum em cinebiografias de inserir fatos e mais fatos da existência do personagem em uma história sem senso narrativo, tornando-se inócuo. Pelo contrário, em Patton – Rebelde ou Herói? são exibidos apenas alguns eventos passados na 2ª Guerra Mundial, mas a construção do personagem é tão bem feita que o espectador sai do filme com a impressão de que conhece toda a vida do general.

E é exatamente esta, sem qualquer sombra de dúvida, a maior qualidade da obra e o fator que faz o filme ser lembrado ainda hoje. Patton – Rebelde ou Herói? é um exemplo de como transformar um personagem de cinema em uma pessoa de carne e osso, capaz de manter o interesse da plateia. Da já citada cena inicial – sem dúvida uma das melhores apresentações de personagem que o cinema norte-americano já construiu –, passando pelas falas precisas e reveladoras e chegando até a interpretação quase sobrenatural de George C. Scott, a produção desenvolve o general Patton como um ser humano de verdade, com motivações críveis, diversas qualidades e, principalmente, falhas de caráter e defeitos como qualquer pessoa. Schaffner, North, Coppola e Scott não têm medo de apresentar este último aspecto de seu personagem; eles sabem que Patton era uma figura única exatamente por sua franqueza e seu pavio curto, e reforçam este lado de forma a torná-lo ainda mais verossímil.

Assim, cada detalhe, cada gesto e cada cena ajudam a formar a persona intrigante e complexa do general. De sua paixão por História, a plateia conhece o exímio estrategista, que busca nas batalhas do passado a inspiração para as suas vitórias. Da leitura de livros escritos pelos inimigos, entende-se o respeito por aqueles que estão do outro lado. Do momento em que diz “Eu estive aqui” no campo de uma batalha ocorrida há dois mil anos, percebe-se o homem crente em algo sobrenatural como a reencarnação. Do beijo na testa de um soldado ferido e dos tapas dados no rosto de um desertor, compreende-se o valor que dá a um guerreiro de verdade e o desprezo dirigido aos covardes. Da crueza de suas frases, delineia-se o homem sem papas na língua, que não busca ser bem quisto se, para isso, for preciso ir contra seus princípios. E, de sua necessidade de ser melhor e mais rápido que um general aliado, forma-se também a figura de um homem vaidoso e orgulhoso, que sabe o que é preciso fazer para se tornar parte da História.

No entanto, a principal faceta que o filme constrói do general Patton é a sua incurável paixão pela guerra e pelo exército, construção essa que também se dá de forma quase impecável. Em certo momento, ao observar um campo destruído após uma batalha, ele chega a afirmar: “Eu amo isso. Deus me perdoe, mas amo mais que a própria vida.” E, se consegue capturar de forma quase mágica a essência do personagem, George C. Scott comprova a perfeição de sua composição em pequenos detalhes que demonstram a devoção de Patton por todo aquele cenário. É o caso, por exemplo, da forma como o ator interpreta os momentos em que o general entra em posição de sentido: mais do que apenas levar a mão direita à altura da cabeça, Scott realiza este gesto de tal forma que fica claro ao espectador todo o orgulho que Patton sente por estar fazendo aquilo, com o peito estufado, um olhar de respeito e quase um sorriso no rosto. Na pele do ator, o personagem histórico se torna uma criatura quase hipnotizante, imprevisível e sempre complexa, porém jamais caricata, fazendo de Patton – Rebelde ou Herói? um filme que se torna interessante a cada nova cena.

Junto a todas essas qualidades, deve ser acrescentado também o ótimo trabalho de Franklin J. Schaffner na condução da história. O cineasta não apenas consegue manter o ritmo do filme durante quase três horas como também se revela capaz de deixar sempre claro ao espectador o que está acontecendo: tanto os avanços de Patton e Montgomery pela Europa quanto as próprias batalhas são muito bem orquestradas por Schaffner e a plateia consegue acompanhar sem dificuldades o desenrolar da história e das cenas (uma lição a cineastas atuais adeptos da montagem videoclíptica e incompreensível). Além disso, mesmo com um protagonista apaixonado por aquele mundo de destruição e morte, o diretor ainda encontra espaço para propor algumas reflexões sobre a guerra, como quando, em uma conversa entre dois personagens, ocorre a seguinte troca de ideias: “Lá vai ele. Todo sangue e colhões”/”Sim. Nosso sangue, colhões dele”, em uma clara alusão à eterna noção de que os criadores das guerras mandam outros para morrer enquanto ficam atrás de suas mesas.

Por outro lado, algumas opções de Schaffner e de seus roteiristas, ainda que não prejudiquem o resultado final do filme, podem ser questionadas. É o caso, por exemplo, da escolha por mostrar em algumas cenas o dia a dia dos nazistas: ainda que deixe claro o fato de Patton também ser respeitado pelo lado inimigo, elas pouco contribuem para o resultado final do filme ou da própria percepção do espectador em relação ao protagonista. O mesmo vale também ao fato de que o general jamais aparece desenvolvendo uma tática de batalha, o que diminui a compreensão de seu lado de brilhante estrategista, e à questão de que os demais personagens jamais chegam perto de uma composição rica como a de Patton – e, mesmo que o objetivo tenha sido refletir sobre quem era de verdade aquele homem, a produção certamente se beneficiaria caso buscasse uma construção mais complexa ao menos daqueles homens mais próximos ao general.

Mas é, definitivamente, o foco no desenvolvimento do protagonista que faz de Patton – Rebelde ou Herói? um grande filme ainda hoje. Dono de um código de ética próprio, repleto de contradições e com uma personalidade difícil de gostar ou se identificar, o Patton de George C. Scott é quase um anti-herói e a figura central de um dos mais interessantes estudos de personagem produzidos em Hollywood.

“Toda glória é efêmera”, diz o general, em certo momento. Em relação ao filme sobre a sua vida, não poderia estar mais errado.

Comentários (4)

Fabio Luis Martins Rafo | quarta-feira, 22 de Fevereiro de 2012 - 19:35

Grande filme, grande critica. Assisti a uns dois anos, e não me lembrava que tinha três horas, de tão envolvente que é o filme, com certeza um dos melhores e mais bem construidos/interpretados personagens do cinema.

Mateus Coppe | quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2012 - 18:26

Gostei do filme, mas discordo do Fábio, achei o filme um pouco arrastado nas cenas de batalha, apesar de incríveis pra época. De resto, o filme é inteiro em cima de Patton, seus diálogos e reflexões são muito envolventes!

Daniel Borges | terça-feira, 28 de Fevereiro de 2012 - 20:42

Crítica maravilhosa!! Ficou perfeita, bem detalhada e interessante. Faz tempo que comprei este filme e ainda não o assisti. Só vi mesmo a abertura fantástica do general com a bandeira americana ao fundo. Aliás, este filme era o favorito de Elvis, então aposto que vou adorar também. 😁

Yuri Mariano | quarta-feira, 09 de Outubro de 2013 - 10:44

A clássica abertura do discurso do general Patton, já é melhor que todos os filmes de guerra já feitos. Ótima crítica! Um dos melhores personagens da história do cinema.

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