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Críticas

Cineplayers

Todd Field: de ator coadjuvante a diretor do melhor filme americano de 2006.

9,0

Quem poderia prever que Todd Field, um anônimo coadjuvante perdido no elenco de filmes tão opostos entre si, como Twister e De Olhos Bem Fechados (ele interpreta o pianista que cede a senha para que o personagem de Tom Cruise tenha acesso àquela estranha festa), sairia da obscuridade para se tornar um cineasta de tanto talento? Logo em seu filme de estréia, Entre Quatro Paredes, lançado em 2001, Todd Field já disse a que veio. De cara, levou para casa o prêmio de melhor filme da Associação dos Críticos de Los Angeles (uma das mais respeitadas nos EUA) e cinco indicações ao Oscar. Para um diretor estreante, chamava a atenção a maturidade com que trabalhava um material tão denso e delicado (no caso, o modo como os pais lidam com a trágica e estúpida morte do filho).

Demorou cinco anos para que Todd Field voltasse para trás das câmeras. Valeu a pena esperar. Pecados Íntimos é o melhor filme americano de 2006.

Pecados Íntimos (Little Children, no original) lança seu olhar para um grupo de pessoas de classe média, que reside nos subúrbios de Boston. A comunidade está assustada com a recente libertação de Ronnie (Jackie Earle Haley), um adolescente na pele de um adulto, acusado de pedofilia.  Mesmo proibido de se aproximar das crianças em locais públicos, os pais não concordam em ter ao lado um ser que representa uma ameaça real aos seus filhos.

Parecendo não se importar com isso, Sarah (Kate Winslet), casada e mãe de uma menina, leva sua filha para brincar no parque. Sentada num banco, lendo seu livro, observa com certo distanciamento a conversa de três outras mulheres que também freqüentam o local com a mesma finalidade. A atenção delas é despertada pela presença do bonitão Brad (Patrick Wilson), que volta e meia aparece por lá com seu filho pequeno. Sem coragem de iniciar um diálogo, as moças o chamam de O Rei do Salão. Este, por sua vez, mesmo sem saber, desperta nelas desejos sexuais há muito escondidos. Sarah aposta com as três mães que não apenas conversará com o rapaz, mas que também dele arrancará um beijo. Do breve diálogo entre Sarah e Brad, dois estranhos até aquele instante, um romance brotará.

Pecados Íntimos trabalha num registro semelhante a filmes como Beleza Americana, Veludo Azul, Felicidade e, voltando mais no tempo, A Caldeira do Diabo. O cinema americano sempre se interessou em investigar a vida de pessoas aparentemente comuns, mas que, vistas de perto, deixam transparecer suas verdadeiras faces. Nos últimos anos, até mesmo a televisão já embarcou nesta temática, em séries de sucesso como Desperate Housewives e A Sete Palmos. A idéia geral destas obras pode ser bem resumida pelo tagline de Beleza Americana ("...look closer"). Em síntese, serve para que todos tenhamos a consciência que, no fundo, ninguém é normal.

Todd Field consegue imprimir algo novo a um material de certa forma desgastado. Baseado no livro Criancinhas, de Tom Perrota, seu co-roteirista, a transposição para a tela grande foi feliz em todos os sentidos. Da interpretação dos atores ao desenvolvimento lento e gradual dos personagens, passando pela bela e irônica narração em off, Pecados Íntimos acerta em praticamente todos os quesitos. De minha parte, saí da sala de exibição trazendo o filme comigo, refazendo-o e montando-o na minha cabeça. Hoje, continuo com os personagens vivos na minha mente, e a cada nova reflexão, me surpreendo ao encontrar outras camadas de interpretação. Filme bom é assim, sempre se auto-renovando.

Talvez o principal mérito de Pecados Íntimos esteja na construção dramática de seus personagens. As ações de Sarah e Brad, certas ou erradas, são coerentes com os respectivos sentimentos ao longo da trama. Não há pressa. Não há exageros. Nada soa forçado. Por mais reprovável e injustificável que seja, o adultério cometido pelos dois protagonistas surge como uma conduta perfeitamente compreensível no contexto da história. Por sua vez, a reação nada romântica de Ronnie ao final de um primeiro encontro amoroso, é por nós aceita como plenamente possível diante do momento dramático do personagem. Roteiro bom é isso: timing é o segredo de tudo.

Kate Winslet constrói uma Sarah que está nitidamente infeliz com sua vida. Ao mesmo tempo, demonstra inaptidão para o casamento e para a maternidade. Mestre em literatura inglesa, parece não fazer um uso produtivo do título. Passa o tempo isolada num quarto reservado só para suas coisas, ao qual nem mesmo a filha tem fácil acesso. Seu encontro com Brad no parque, de uma brincadeira com as amigas, ganha contorno eróticos quando ela descobre que seu marido transferiu sua atividade sexual para as mulheres virtuais da internet. É o sexo seguro dos tempos atuais: de um lado, não se contrai doenças transmissíveis; e de outro, experimenta-se, ainda que no imaginário, diversos parceiros sem necessariamente ser infiel ao casamento.

O romance faz com que Sarah passe a rever seus próprios conceitos sobre o matrimônio e a busca da felicidade. Num sarau literário, ela comenta o livro Madame Bovary, de Flaubert. Para Sarah, as ações adúlteras da protagonista, até então vistas como reprováveis, são, agora, entendidas como reações naturais de uma mulher insatisfeita com os rumos da sua vida. Presa a um casamento infeliz, Emma Bovary tinha o pleno direito de encontrar a alegria e realização pessoal por outros meios, ainda que isso significasse a traição ao seu companheiro. Sarah, a Bovary dos tempos atuais, simboliza a mulher Século XXI, auto-suficiente, detentora de uma autonomia sobre suas próprias decisões e capaz de assumir as devidas responsabilidades.

Na outra extremidade, o talentoso Patrick Wilson demonstra que não teve culpa naquela tragédia chamada O Fantasma da Ópera. Seu personagem é um imaturo até o último fio de cabelo. Desempregado e já reprovado por duas vezes no exame da ordem dos advogados, Brad parece ter se acostumado ao fracasso. Como uma criança cabulando aula, prefere acompanhar as manobras radicais de skates praticadas por adolescentes desconhecidos, em vez de se debruçar sobre os livros de direito. Enquanto isso, sua esposa Kathy (Jennifer Connelly) banca com dificuldades as contas da casa trabalhando como documentarista.

Brad sente-se nitidamente inferiorizado em relação à mulher. É ela que assume a função – normalmente masculina – de provedora do casal. Além disso, Brad percebe que a esposa revela prazer em seu ofício, sentimento que a advocacia parece não lhe despertar. Por fim, sua condição de marido e de homem é colocada em xeque quando Kathy passa permitir a presença do filho no leito conjugal com uma freqüência cada vez maior. Colocado em segundo plano como objeto de desejo sexual da própria mulher, Brad tem que buscar a auto-afirmação perdida em outro lugar. Retrato do homem contemporâneo – ou talvez do homem em qualquer momento no tempo – ele preenche o vazio da sua vida iniciando um romance com Sarah. Mesmo perdendo de longe numa comparação estética com sua mulher, Brad consegue erotizar sua amante e daí extrair um novo oxigênio para sua vida.

A necessidade inconsciente de Brad em ser aceito por terceiros, o leva a integrar-se a um grupo de policiais da comunidade, praticantes de futebol amador. Ao ingressar naquele pequeno gueto, Brad sente como se tivesse comprado um bilhete só de ida para o mundo adulto. O jogo é violento. Os jogadores, visto como uns brutamontes, se arrebentam uns aos outros. Todd Field os filma como verdadeiros leões, quase primatas, reis de uma selva materializada num campo de jogo. Ainda assim, mesmo combalidos, todos saem felizes e satisfeitos com os próprios desempenhos, prontos para entrar no primeiro bar e continuar o papo ao sabor de uma cerveja.

Field parece querer mostrar que essa saciedade dos homens é inclusive sexual. Os touch-downs são a própria metáfora do orgasmo. Sua mensagem é a de que o homem de hoje sente-se mais à vontade em exibir seu lado masculino ao lado de outros homens. A virilidade é exteriorizada dentro dos chamados clubes do bolinha, e não em casa, entre quatro paredes, ao lado das esposas, por quem esta conduta é esperada e, mais que isso, desejada. Teria o homem moderno tanto receio – ou quem sabe vergonha – de se desnudar na frente de suas próprias mulheres, mais independentes e auto-suficientes do que nunca? Os casamentos atuais se baseariam mais no medo do que no amor? O diretor não dá a resposta, mas é possível inferi-la na figura do treinador e árbitro das partidas. Sentado sobre uma cadeira de rodas, ele é o símbolo da impotência e a dificuldade masculina em lidar com esta situação.

Por mais destaque que o roteiro dê ao romance entre Sarah e Brad, o personagem que resume a essência da obra é o de Ronnie. O ator Jack Earle Haley sai de uma reclusão aparentemente voluntária (ele foi um dos garotos do time de beisebol, no sucesso Garotos em Ponto de Bala, lançado há mais de 30 anos e que tinha Walter Matthau e Tatum O´Neal nos papéis principais) para viver um pedófilo, filho de uma mãe extremamente castradora. Adulto de direito e adolescente de fato, Ronnie, após ganhar a liberdade, tenta reiniciar sua caminhada. Para tanto, sua mãe providencia a publicação de anúncios para encontros amorosos, descrevendo as características do filho. A idéia dá certo em parte. A personalidade deturpada de Ronnie é mais forte, arraigada que está numa infância que talvez tenha sido vivida mais pela mãe do que por ele mesmo.

A piscopatia de Ronnie e o perigo que ela representa perante a comunidade, servem para que os personagens se sintam menos culpados pelas suas próprias neuroses. Visto como uma verdadeira aberração da natureza, as pessoas transferem a ele todo o mal existente no ser humano. Esquecem-se de olhar para o espelho, onde veriam refletidos seus próprios pecados. A seqüência da piscina, na qual Ronnie é expurgado daquele meio social como um vírus mortal, diz tudo e mais um pouco.

Por melhor que seja título nacional, teria sido melhor manter o original. Quem são as verdadeiras criancinhas? Seria Ronnie, o adulto infantilizado pela mãe dominadora? Seria o casal Sarah e Brad, imaturos na forma como tentam resolver suas próprias fragilidades? Seriam as próprias crianças, assustadas com a ameaça de um psicopata na casa ao lado? Seriam as três esposas do parque, que de tão fiéis à instituição do casamento, praticam sexo com hora marcada e nem percebem que o parceiro adormece durante o ato? Na verdade, as criancinhas somos todos nós, imediatistas, egocêntricas, inimputáveis e irresponsáveis por nossas próprias condutas. Tudo em nome de uma incessante luta pelo crescimento e afeto do próximo.

Amadurecer requer mais trabalho e dedicação do que se imagina.

Comentários (1)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 30 de Novembro de 2013 - 17:55

Quem ainda não viu, por favor, procure este filme e se surprienda. A atuação de Jackie Earle Haley é muito boa mesmo.

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