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Sobre as potencialidades de um grande cineasta.

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Para a primeira temporada da série Masters of Horror, Dario Argento investiu em um filme cujas cenas de violência se distanciariam daquelas típicas de seu período dourado, que eram extremamente deslumbrantes, e onde o sexo seria explorado de maneira mais intensa. Jenifer – Instinto Assassino (Jenifer, 2005) mostra uma faceta argentiana mais objetiva e gore – perfeitamente pertinente com a proposta e formato da série, mas ainda aquém do que se pode esperar do mestre italiano. Por sua vez, Pelts (idem, 2006), trabalho realizado para a segunda temporada, é um passo à frente e um instigante e radical exemplo de como redimensionar um consistente projeto de cinema e como, em menos de uma hora, fazer de uma ideia absolutamente simples um legítimo conto de horror. O filme conta a história de um ambicioso homem – Jake Feldman (Meat Loaf) – que trabalha obstinadamente na confecção de um casaco feito de peles de guaxinins. Todos aqueles que mantêm contato com a vestimenta – que é amaldiçoada – passam a realizar os atos mais insanos contra seus próprios corpos e, esporadicamente, contra os de outras pessoas.

Apesar de Pelts, assim como Jenifer, ser uma obra absolutamente distinta dos grandes clássicos de Argento, de suas imagens estarem distantes daquelas hiperpsicodélicas talhadas pelo italiano em sua fase áurea (décadas de 70 e 80), possui cenas que causam uma sensação de déjà-vu àqueles que conhecem com certa profundidade sua filmografia. Nele é possível encontrar algumas colagens, elementos que recuperam passagens de outros filmes e arquétipos dos gêneros pelos quais o diretor trafegou, como, por exemplo, nos minutos iniciais, a imagem de duas mãos com luvas lavando uma faca: eram as mãos de Feldman – que provavelmente acabara de curtir algum pedaço de couro – compondo uma possível alusão às misteriosas mãos dos assassinos do giallo. Daí em diante, Argento seguiu inserindo em algumas cenas imagens de bichos (lagarto, minhoca) – habitantes de uma grama verdíssima; algo semelhante presenciamos nos ousados cortes de filmes como Mansão do Inferno (Inferno, 1980) e no bucolismo desconcertante do último ato de Terror na Ópera (Opera, 1987). Aliás, o lagarto é um elemento - insuflado de simbolismo - que aparece em vários de seus longas. Além disso, nos minutos finais, vemos uma personagem presa a um elevador – que sobe, decepa sua mão e faz com que o sangue jorre furiosamente. Podemos encontrar elos em cenas sublimes de Prelúdio Para Matar (Profondo Rosso, 1975) – naquela em que determinada personagem é morta justamente por um elevador – e Tenebre (Tenebrae, 1982) – onde uma mulher literalmente pinta uma parede com o próprio sangue logo após ter a mão cortada por uma machadada.

Mas é claro que Pelts não é apenas um filme de bricolagens, até porque creio que essa construção referencial à qual me detive por instantes tenha sido uma maneira bastante sutil de Argento dialogar com seus fãs mais observadores. Por conseguinte, não é fonte suficiente para uma apreciação mais consistente do trabalho, pois mesmo que estejamos lidando com uma cria à parte, não há como o cinema deixar de manter diálogos internos – através de imagens que podem estar para cá e/ou para lá do conjunto da obra do artista em questão. O que é mais relevante é entender que este telefilme aproxima Argento de um tipo de cinema que sempre foi mais praticado por outros realizadores – aqueles adeptos de vertentes concretamente mais violentas. Pelts está edificado sobre um terreno onde prevalece a mais cruel flagelação dos corpos, e sendo assim alguns de seus melhores insights estão na extremidade de cada morte. Para isso, claro, a mente perversa do italiano teve de funcionar mais uma vez: afinal de contas, costurar o próprio rosto e arrancar a pele como se fosse uma camisa são bizarrices que podem fazer até mesmo realizadores pirados como Takashi Miike tirarem o chapéu. Não soa estranho também ser uma obra repleta de mulheres seminuas – que fazem sexo oral inclusive –, uma vez que é um filme sobre o corpo, desnudo da estilização exacerbada de outrora. Entretanto, apesar de enfiar sem pena os cinco dedos na ferida aberta, percebemos que há ainda em Pelts traços daquele refinamento que é tão típico de Argento quanto referências a Howard Hawks são de John Carpenter. Isso, consequentemente, é o que o torna bastante equilibrado.

Aproveito a citação a Carpenter para tecer mais uma comparação: desta vez entre Pelts e Pesadelo Mortal (Cigarette Burns, 2005), contribuição do mestre estadunidense para a mesma série. Neste último, existe um raro filme maldito chamado Le Fin Absolue Du Monde, que age de maneira semelhante a do casaco, uma vez que o simples ato de sair à sua procura representa um grau de envolvimento extremamente mortal. Só consigo enxergá-los, por conseguinte, como filmes irmãos. Temática e estruturalmente parecidos, radicais e eficazes em suas execuções, são dois filmes sobre o inconcebível – sobre matar e morrer sem motivos tangíveis ao plano natural das coisas – capazes de acertar em cheio o espectador por meio do manuseio de imagens absurdamente cruas e, mesmo que insanas e por vezes completamente irrealizáveis, reais até a medula. Pelts, portanto, é uma obra deslocada, um elemento díspar dentro do enorme mural multicolorido composto pelas obras clássicas de seu criador, mas é também um enervante fruto de uma nova experiência profissional que, pela exímia condução, deixa um gosto de satisfação insolúvel. Trata-se de uma pequena joia dos últimos 10 anos de produção cinematográfica.

Comentários (6)

Victor Ramos | segunda-feira, 07 de Novembro de 2011 - 16:11

Ainda não assisti esse, mas tenho que ver, aliás, é Argento. E gosto de alguns filmes dessa série. Bacana.

Lucas Castro | segunda-feira, 07 de Novembro de 2011 - 16:56

Eu vi essa série até onde eu pude, mas era bem fraca. Até o primeiro episódio do Argento e o do Joe Dante não curti muito. Aí tirei só Pelts e Cigarette Burns pra ver, são demais mesmo.

●•● Yves Lacoste ●•● | segunda-feira, 07 de Novembro de 2011 - 22:08

É um dos episódios da série MESTRES DO TERROR. Aqui foi lançado como filme. Dessa série gostei de PACTO COM O DEMÔNIO. E aqui no site ainda falta pôr os restantes. Se não estou enganado, aqui tem uns 5 ou 6.

DRIVER | quarta-feira, 09 de Novembro de 2011 - 17:33

É basicamente um Argento sem limites. Aqui ele se desvincula da sua estética, pois ganhou liberdade dos produtores pra mostrar uma alta carga de violência. E se sai muito bem. Junto com Cigarrete Burns do Carpenter, é o melhor episódio da série.

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