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Críticas

Cineplayers

Em Marte, ninguém pode ouvir você gritar.

8,0

Sou da opinião de que nunca se deve dar a carreira de um grande artista por encerrada. Por mais que trabalhos recentes decepcionem, quem um dia realizou uma obra de verdade pode, a qualquer momento, voltar a fazê-lo. Ridley Scott é um bom exemplo dessa teoria. Embora responsável por clássicos do cinema na segunda metade do século XX, o cineasta britânico jamais foi capaz de manter uma regularidade em sua filmografia, oscilando entre produções de indubitável qualidade e outras de gosto bastante duvidoso – para não dizer ruins. Mas nunca se deve dar a carreira de um grande artista por encerrada, e Scott mostra isso mais uma vez ao realizar Perdido em Marte (The Martian, 2015), seu melhor trabalho em muitos anos.

Escrito por Drew Goddard [do bacanérrimo O Segredo da Cabana (The Cabin in the Woods, 2012)] a partir do livro de Andy Weir, Perdido em Marte é um filme que reserva uma boa parcela de surpresas – mais em função da própria abordagem de Scott do que pelo enredo, que segue por caminhos fáceis de prever. A principal dessas surpresas talvez seja o tom de leveza com que o roteirista e o diretor encaram o material; seria fácil transformar a história de um homem sozinho em um planeta distante em um conto sombrio e reflexivo, mas não é o que ocorre. Perdido em Marte é uma produção surpreendentemente divertida, com diversas passagens eficazes de humor, e ágil, não obstante as mais de duas horas de duração.

Nesse sentido, méritos devem ser dados a Goddard, hábil ao condensar os inúmeros acontecimentos e personagens da trama em um todo coeso e equilibrado – no que recebe apoio do excelente trabalho de edição de Pietro Scalia. O roteirista certamente precisou fazer algumas escolhas arriscadas: é bastante temerário, por exemplo, iniciar o filme sem qualquer preâmbulo ou apresentação dos personagens, por limar um fator essencial para uma obra dessa natureza, a identificação entre a plateia e as pessoas da história – mais especificamente, Mark Watney, o protagonista. Como se não bastasse, Perdido em Marte também traz muito pouco sobre o passado ou a vida particular dos astronautas e dos profissionais da NASA envolvidos na situação, optando por construir suas personalidades e obter a empatia da plateia apenas no desenrolar dos fatos.

Escolha arriscada, mas que se revela bastante eficiente. Contando com um roteiro que raramente se permite digressões, os realizadores não precisam de muito para fazer com que o espectador “torça” pelo destino dos personagens. A camaradagem entre os astronautas, sempre implicando uns com os outros, e as difíceis decisões tomadas pelo pessoal na Terra contribuem para a construção desse laço imaginário. Ajuda também, claro, a qualidade e o carisma dos atores, que retiram o máximo de seus personagens mesmo quando têm pouco tempo em tela. É o caso de Jeff Daniels, por exemplo, que, beneficiado pela inteligente opção do roteiro de não transformá-lo em um vilão, faz do diretor da NASA um líder coerente e firme, e de Jessica Chastain, que impressiona ao compor uma capitã incrivelmente segura e eficaz em suas decisões, sem deixar de demonstrar vulnerabilidade.

Mas Perdido em Marte é um filme de Matt Damon. Se não se pode dizer que é um show-de-um-homem-só – como foi o caso de Sam Rockwell em Lunar (Moon, 2009)  –, uma vez que a narrativa exibe ao mesmo tempo os acontecimentos da Terra e da nave, não seria equívoco algum creditar o sucesso da produção ao talento do ator. Surgindo quase sempre sozinho em cena, Damon demonstra o seu alcance dramático ao transmitir eficientemente toda a gama de emoções vivida por Watney, especialmente sua incontestável determinação. O personagem é prático: ele entende que não há tempo para lamentar, portanto, age. Assim que acorda do acidente que dá início ao filme, por exemplo, prontamente retorna à base e cuida do ferimento, sem qualquer choro de sua parte. Damon passa essa força e esse otimismo de forma completa, sem deixar de lado o bom humor tão fundamental para o público abraçar o protagonista, e que resulta em alguns dos momentos mais divertidos do filme (“Sou o melhor botânico desse planeta”).

Aliás, a personalidade de Watney é amostra de outro fator essencial para o resultado positivo de Perdido em Marte: a inteligência dos personagens. Quem não se irrita com filmes nos quais os protagonistas tomam decisões que nem mesmo uma criança de cinco anos tomaria? Aqui, Scott e Goddard têm o cuidado de não se renderem a essa muleta de roteiro para criar situações e conflitos novos; quando algum problema acontece, é simplesmente por ser inevitável. Estamos diante de pessoas inteligentes que precisam tomar decisões rápidas com o que têm em mão, e é sempre um prazer assistir a personagens assim em ação. Como consequência, é sempre um prazer de acompanhar a narrativa de Perdido em Marte, sem contar o fato de não ser tão fácil encontrar filmes que respeitem a inteligência do espectador.

E talvez o melhor exemplo dessa maneira reverente com a qual Scott e Goddard tratam a plateia é que Perdido em Marte é um filme que valoriza – e muito – o lado científico da trama. Estou longe de dominar os campos do conhecimento exibidos na produção para avaliar sua verossimilhança, mas isso não importa; o que importa é que tudo PARECE real. Os realizadores evitam a armadilha de criar situações incríveis em prol do espetáculo, preferindo manter os pés no chão em todas as soluções encontradas pelos personagens. É uma escolha louvável para uma história passada em Marte, e que acaba por trazer aos acontecimentos um lastro que ajuda a aproximar o espectador da narrativa. Perdido em Marte, dessa forma, transforma-se em uma verdadeira ode à ciência e ao conhecimento, onde o cérebro é muito mais importante para a sobrevivência do que os músculos. Não é à toa que, quando se dá conta do que precisa fazer para escapar do planeta, Watney exclama uma frase que tem tudo para se tornar cult: “I’m gonna have to science the shit out of this.”

Também é louvável perceber que, mesmo abordando diversas questões técnicas, Scott e Goddard jamais carregam o filme de didatismo. A solução para a plateia entender as ações de Damon no planeta vermelho é simples, mas bastante eficiente: uma espécie de diário em vídeo, recurso que permite ao protagonista explicar seus pensamentos e atitudes sem jamais soar artificial - nada de Sandra Bullock falando consigo mesma, portanto, naquele que é o fator de maior incômodo em Gravidade (Gravity, 2013). Aliás, o artifício é tão eficaz que a plateia até mesmo anseia por maiores explicações em determinados momentos, embora elas não sejam necessárias para o desenrolar da trama.

Mas o principal mérito de Perdido em Marte está mesmo no tratamento leve e divertido que Scott e Goddard dão ao material. Há apenas menções superficiais a temas como a sanidade do protagonista ou às consequências de uma vida em isolamento. Na verdade, Watney nem parece sofrer muito, haja vista o alto astral que é capaz de manter em seu longo exílio no planeta vizinho. O resultado é um filme que jamais ambiciona uma profundidade psicológica ou uma possível reflexão existencial, o que não é demérito, pois os realizadores têm plena consciência daquilo que pretendem alcançar. Dessa forma, Perdido em Marte é uma obra extremamente eficaz dentro daquilo a que se propõe, e, se alguém esperava a densidade de um Tarkovski em Solaris (idem, 1972) ou a ambição de um Nolan em Interestelar (Interestelar, 2014) (ambição não alcançada, vale ressaltar), está no filme errado. Perdido em Marte é uma aventura divertida e realizada de forma competentíssima, uma limitação na qual parece se sentir bastante à vontade.

Na verdade, chega até a estranhar o comedimento de Scott na produção. Comumente associado a espetáculos visuais, o cineasta britânico prefere dar um passo atrás e focar na história. Sim, Perdido em Marte tem imagens deslumbrantes do planeta vermelho e do espaço, mas o CGI nunca assume a frente do que está sendo contado; pelo contrário, está ali de maneira discreta, apenas para tornar realidade a trama. Notável também é a maneira como Scott evita o exagero do melodrama, inclusive no final do filme – algo que um diretor menos maduro certamente abraçaria sem culpa, buscando a manipulação da plateia.

Claro que há um ou outro deslize: em certo momento, o diretor começa uma cena com uma imagem de um discurso sendo visto em uma tela de TV, para depois assumir a imagem tradicional, em um recurso que nada acrescenta à sequência em questão. Enquanto isso, o clímax também ameaça descambar para o excesso, embora consiga evitar de abraçá-lo totalmente, e o fato de o resgate ser transmitido ao vivo por emissoras de TV quase joga por terra a verossimilhança da narrativa. E o que dizer da maneira óbvia e desengonçada com que Scott evita filmar o rosto do dublês nas cenas em que o protagonista aparece magro?

Longe de ser um filme de ação como foi vendido, Perdido em Marte é uma espécie de híbrido entre Náufrago (Cast Away, 2000) e Apollo 13 (idem, 1995), acrescentado de alguns toques cômicos (a piada com Sean Bean e O Senhor dos Anéis merece destaque). Trata-se de um belo exemplar do cinema comercial norte-americano, capaz de combinar espetáculo e inteligência na medida certa, ainda encontrando espaço para momentos mais contemplativos, como o de Mark Watney sentado em uma duna de Marte observando o horizonte. Porém, acima de tudo, é a prova de que um artista comprovadamente talentoso sempre tem a arte dentro de si, embora nem sempre consiga exprimi-la em toda sua forma.

Ridley Scott, aqui, felizmente conseguiu.

Comentários (11)

Mateus da Silva Frota | terça-feira, 13 de Outubro de 2015 - 20:21

O Silvio Pilau (quem nem é um dos comentaristas favoritos do site) escreveu uma de suas melhores críticas que até me levaram a anormalidade de fazer um comentário. Ele soube muito bem a que "gênero" o filme servia, e ressaltou os mesmos pontos que me fizeram apreciar Perdido em Marte, que nem era uma das minhas primeiras opções para ir ao cinema na semana. É sempre muito bom ver quem sabe escrever sobre um filme, mas é ainda melhor quem acrescenta algo a experiência de ter assistido.

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