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Persépolis diverte, emociona e nos faz refletir sobre os absurdos praticados pela humanidade contra ela mesma.

8,0

Persépolis é a adaptação da história em quadrinhos de mesmo nome, já lançada no Brasil pela Companhia das Letras. Sua autora, a iraniana Marjane Satrapi, queria contar todas as experiências vividas nos duros anos da infância e adolescência em seu País. O sucesso do desenho foi tanto, que a transposição para o cinema era algo inevitável. Para a empreitada, ela pediu ajuda a Vincent Paronnaud, cartunista francês já com algum currículo em filmes de animação. Ambos assim assumiram a direção. A parceria deu certo. Persépolis conquistou uma enxurrada de prêmios ao redor do mundo, entre eles o Grande Prêmio do Júri no último Festival de Cannes (espécie de segunda colocação), seis indicações ao César, além de ter sido o representante oficial da França a uma das vagas ao Oscar de melhor filme estrangeiro (a Academia o preteriu, preferindo alocá-lo entre os finalistas da categoria de melhor filme de animação).

A história é contada em flashback. Logo no início, uma Marjane (voz de Chiara Mastroianni) adulta e solitária, senta-se numa das poltronas do aeroporto de Orly, na França. Ela olha para o painel que indica os aviões estão partindo. Sua atenção recai sobre o vôo em direção ao Teerã. Seu rosto ganha uma expressão de tristeza, melancolia e amargura. No balcão do check-in, ela não consegue entregar o passaporte à atendente da companhia aérea. Algo a consome. Volta a se sentar nas cadeiras, acende um cigarro e permanece pensativa. De repente, os traços coloridos se tornam preto-e-branco. Uma garotinha irrompe à sua frente. Ela pula e grita, feliz da vida. O passado começa a tomar forma. Pessoas queridas entram cena. Eles estão vindo buscar conhecidos no aeroporto. “Bem-vindos ao Teerã!”, fala um homem mais velho. A transposição está feita. Já não estamos mais em Paris. Viajamos no espaço e no tempo, para o Irã de 1979, país cujas belezas naturais são diretamente proporcionais aos seus problemas sociais e políticos.

Marjane está com 9 anos. Ela vive uma infância tradicional, ao lado dos pais (vozes de Simon Abkarian e Catherine Deneuve) e da avó materna (Danielle Darrieux). Seu sonho é poder usar calças Adidas e depilar as pernas. Filha de intelectuais de esquerda, ela observa as transformações sociais pelas quais passa o Irã. A população vai às ruas exigir a renúncia do ditador Xá Reza Pahlavi, comandante do País desde os anos 40. A garota não entende o motivo de tanta revolta, já que, conforme aprendeu na escola, os xás foram levados ao poder por escolha divina. Aos poucos, ela vai tomando conhecimento das atrocidades praticadas pelo regime vigente. Paradoxalmente, o êxito da revolução traz o aumento das restrições às liberdades individuais. Era o início da época dos aiatolás, tidos como os peritos em religião, tendo na figura de Ruhollah Khomeini o seu comandante maior. Seu tio, um dos ídolos de infância, é assassinado na prisão. Deflagra-se o conflito como o vizinho Iraque. Os meninos são incentivados a entrar no exército e, em troca da entrada no Paraíso, a morrer pelo País. As meninas, obrigadas a andar pelas ruas cobertas dos pés à cabeça e proibidas da namorar. Qualquer indício de ocidentalização, como uma camiseta punk, discos do Iron Maiden (comprados no mercado negro) e camisetas com a foto do Michael Jackson, é severamente censurado. Neste cenário político conturbado, Marjane começa a se descobrir como pessoa e, mais tarde, como mulher.

Do ponto de vista formal, Persépolis não guarda qualquer semelhança com os desenhos americanos. Não apenas pela opção do preto-e-branco (com alguns tons de cinza), mas também pelo traço arredondado e não tridimensional.

O conteúdo, por sua vez, está longe de ser infantil ou fantástico (como os desenhos japoneses). O roteiro não se esquiva de mostrar os traumas da guerra (como a visão de uma mão decepada entre os escombros deixados por um ataque aéreo), de mencionar a prática da tortura por parte das autoridades iranianas que se revezavam no poder, a influência dos britânicos e dos americanos na manutenção daquele regime, no uso natural de palavrões, na abordagem de temas como a infidelidade, a depressão e a perda da virgindade (estes três apresentados quando Marjane passa a residir durante um período na Áustria, local em que ela viverá seus maiores conflitos internos), além da violência à dignidade da mulher. Algumas destas seqüências são trabalhadas de forma particularmente inteligente, como por exemplo o conflito armado visto ao som de Iron Maiden e o tiro das armas se desabrochando em uma flor.

Vendo a peregrinação de Marjane, impressiona o fato de ela não ter sucumbido diante de tantas dificuldades. Numa sociedade (e aqui me refiro também às ocidentais) que retira das mulheres a autonomia da escolha, restando a elas o papel de donas de casa e de esposas subservientes, a vitória da protagonista ganha ainda mais valor. Sem querer cair em moralismos ou pieguices, é evidente que o grande responsável por isso foram os valores familiares que Marjane recebeu ao longo de sua infância, não apenas dos seus pais, mas sobretudo da sua avó (outra grande personagem do filme). Nada é escondido de Marjane, que tem livre acesso às conversas entre os pais e os demais revolucionários. Mais à frente, antes de embarcar para a Áustria, onde os pais entendem que ela estará mais segura, recebe da avó um conselho para se manter honesta consigo mesma, independentemente dos homens que a tentem passar para trás. É também a avó que vai socorrê-la numa questão ligada ao seu futuro divórcio. Em tempos que o feminismo parecia ter virado uma palavra (ou uma prática) desconhecida pelas próprias mulheres, estes conselhos beiram ao sagrado. 

Persépolis diverte, emociona e nos faz refletir sobre os absurdos praticados pela humanidade contra ela mesma. Na minha lista dos melhores filmes exibidos no Brasil em 2008, Persépolis certamente estará lá.

Comentários (1)

Alexandre Barbosa da Silva | sábado, 01 de Outubro de 2011 - 08:10

O Filme é lindo. Mostra que o regime islâmico é opressor e controlador, mas não deixa de mostrar que a sociedade ocidental não é o paraíso que se prega. O que fica evidente quando Marjane fala: "Lá você pode morrer na rua e ninguém liga."

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