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Críticas

Cineplayers

Biografia de Piaf é melodrama absolutamente dispensável.

2,0

A experiência de ter ido assistir a “Piaf – Um Hino ao Amor” (2007) no cinema foi bastante curiosa. Já tinha ouvido relatos de crises de choro ininterruptas e de aplausos ao final da sessão, como se a própria artista, ícone da canção francesa no século passado, houvesse se apresentado ali mesmo, ao vivo, sobre o tablado de um teatro. Para minha surpresa, tais reações se repetiram na minha sessão, mesmo depois de meses do filme em cartaz. A sala não estava lotada, bem menos da metade das poltronas preenchidas. Mas as lágrimas dos poucos espectadores não pararam de escorrer e, para grande espanto meu, no grand finale, vieram as palmas e os assobios. Quando as luzes se acenderam, pude escutar o resto de conversa de um casal sentado na fileira à minha frente, ele perguntando a ela se a história não era de fato linda de tão triste. Acrescentou ainda ter sido por essa razão ter visto o filme pela terceira vez.

Inegavelmente o tal espectador falava de uma experiência catártica vivenciada através do longa de Olivier Dahan sobre a vida de Edith Piaf. Provocar lágrimas, choro, soluços, emoções-limite – tais reações, nitidamente, são os objetivos pretendidos junto ao público pela estrutura narrativa de “Piaf”. A estrutura do melodrama, adicionada a ela doses cavalares de estilização dramática até levar ao extremo a vitimização da protagonista.

Do Melodrama

O gênero “melodrama” nasce como simplificação de formas narrativas mais rebuscadas, de assimilação mais complicada pelo grande público. Exemplos: a tragédia clássica, na qual os conflitos apresentam ambigüidades intransponíveis, ou o realismo, o qual se vale de ironia, humor, e até da paródia, para retratar um contexto dramático multifacetado. O melodrama, ao contrário, não aceita dialética; seu negócio é o maniqueísmo: Bem e Mal divididos inteiramente, cada um no seu canto, e a vitimização dos protagonistas, com seus destinos dados externamente, sem que possam fazer quase nada para alterá-los. Trata-se de uma espécie de versão cinematográfica da novela folhetinesca, do tipo "Bianca" e "Júlia", facilmente encontrável em bancas de jornal.

No entanto, a própria história do melodrama não foi unidimensional como a proposta narrativa original. Vários foram os diretores que se valeram desse gênero, por conta do forte apelo junto à massa de espectadores, imprimindo-lhe, porém, toques pessoais. Diluindo na fórmula geral elementos ligados à escolha pessoal dos personagens – seja sob a forma de redenção ou de tragédia –, a fim de não desgastar o gênero, visto muito mais como uma massa genérica de bolo que requeria outros ingredientes para não ficar pesada demais.

Podemos pinçar exemplos inesgotáveis para sustentar o parágrafo anterior. Desde os clássicos de Douglas Sirk, mestre do melodrama hollywoodiano – recomendo, dele, “Imitação da Vida” (1959) – até o cinema de diretores considerados super autorais, como o alemão Rainer M. Fassbinder e o inglês Ken Loach (ambos muito distintos em seus enfoques temáticos e narrativos, mas conscientes da escolha do melodrama como base de suas narrativas).

Recentemente, um melodrama de boa repercussão de crítica e público foi “Menina de Ouro” (2004), de Clint Eastwood. Outro: o franco-espanhol “Mar Adentro” (2004), de Alejandro Amenábar, com Javier Bardem na pele do protagonista tetraplégico que reivindica o direito de interromper a própria vida. Ambos são histórias para chorar, inegavelmente, mas sem apelação. Retratam personagens que lutam contra a fatalidade do destino, independentemente do resultado final. E tampouco derrapam em excessos de psicologismos para construir sua dramaturgia.

Da Caricatura

“Piaf”, pelo contrário, é um oceano de excessos. É o melodrama ao pé da letra, sem concessões ou mediações. A matéria-prima, em si, é tentadora para tanto – a vida de uma mulher pobre e sofrida que chegou ao topo de uma carreira artística em nível mundial. Na visão do filme, apesar do sucesso, Piaf continuou sendo a pobre coitada de sempre. A impressão é a de que o diretor e autor do roteiro, Olivier Dahan, não conseguiu conter sua veia sádica. Construiu um retrato de Edith Piaf carregado nas tintas da desgraça e, mais grave, baseado numa estrutura narrativa de causa e efeito unidimensional – Piaf só poderia ter tido uma trajetória tão desastrosa por conta do tanto de tragédia e sofrimento em sua vida. Como se não tivesse havido escolhas para ela – um indivíduo 100% vítima. Resultado: uma encenação caricatural, tanto na decupagem, no ritmo, como na atuação de Marion Cotillard, um misto da noiva-cadáver de Tim Burton com trejeitos de Olívia Palito.

Uma das conseqüências da opção pela total vitimização da protagonista é o descaso com a obra da grande artista que foi Edith Piaf. Ao privilegiar apenas a questão pessoal, pontuando um a um, em detalhe, os trágicos incidentes na biografia da cantora, negligenciou-se a ponte entre a vida e a obra de um artista, entre seus dramas pessoais e a possibilidade de dar-lhes sentido no âmbito artístico. A trajetória da Piaf dos palcos, daquela que se entregava de corpo e alma em cena, interpretando crônicas de maltrapilhos e amores frustrados, ficou diminuída, relegada a coadjuvante.

Outro grave problema: pelo simplismo dramático do roteiro, reforçar uma idéia de determinismo psicológico, como se as mazelas de infância explicassem inteiramente os caminhos trilhados na vida adulta. Não podia ter sido diferente; a pobre Piaf tinha que acabar como acabou, diz a narrativa.

Do Sofrimento

“Piaf”, o filme, me fez lembrar de um pensamento muito freqüente na minha infância. Minha visão de Deus àquela época era muito assustadora; morria de medo Dele. Morria de medo de que Ele tivesse posto em meu caminho provações as mais insuportáveis. Se inclusive seu único Filho havia sido entregue à morte, e ainda assim o sofrimento humano não havia se extinguido... Eu, um pobre diabo, poderia muito bem ter nascido com uma quota monstro de sofrimento destinada pelo Todo-Poderoso. Mas, afinal, para que, se mesmo com o meu infortúnio as outras pessoas não iriam parar de sofrer?

Para a biografia cinematográfica de Piaf, vale a analogia: afinal, qual o intuito de retratar tanto sofrimento de um só indivíduo? Para que o espectador pense que sua própria vida não é – e não foi – tão desgraçada quanto à da cantora francesa? Sadismo inútil e hipócrita...

Comentários (2)

Douglas Braga | domingo, 16 de Fevereiro de 2014 - 13:34

O filme tem vários problemas mesmo, mas falar que a atuação da Marion é \"um misto da noiva-cadáver de Tim Burton com trejeitos de Olívia Palito\" só pode ser piada.

Rodrigo Giulianno | sexta-feira, 03 de Junho de 2016 - 11:16

Não é um grande filme, mas está muito longe de ser bomba!

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