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Críticas

Cineplayers

A tragédia solitária sul-coreana.

7,5

Como nos seus dois filmes mais conhecidos – os clássicos recentes Casa Vazia (Bin-jip, 2004) e Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera (Bom Yeoreum Gaeul Gyeoul Geurigo Bom, 2003) – Duk conta a história de um indivíduo solitário que passa por uma transformação ao encontrar alguém que catalisará numa série de eventos que lentamente o expulsarão de sua vida alienada.

Se antes era um jovem arrombador à procura de um local para dormir que tinha sua rotina transformada ao encontrar uma mulher com quem se identificava ou então um jovem discípulo de um monastério que, ao conhecer uma mulher, conhecia toda a sorte de sentimentos que iam contra os ensinamentos de seu mestre, aqui conhecemos Gang-Do, um jovem que vive de cobrar de trabalhadores o dinheiro que eles emprestaram de um agiota. Sua cobrança é brutal e insensível: ele aleija pessoas com uma expressão vazia no rosto, para que o seguro pague as dívidas delas.

O jovem, que vive da rotina violenta e de momentos de tédio onde na maior parte do tempo apenas come e se masturba de maneira silenciosa e algo desesperada, tem seu cotidiano interrompido pela misteriosa Mi-Son, uma mulher que diz ser sua mãe que o abandonou quando ele ainda era recém-nascido. Apesar da agressividade inicial – tanto pelo sentimento de dúvida quanto pelo posterior de raiva, Gang-Do acaba se afeiçoando pela mulher e querendo torna-la parte de seu cotidiano – e o problema, agora, é ver o feitiço virar contra o feiticeiro: após arruinar tantas famílias que caíram em desgraça por suas pedras fundamentais terem se tornado aleijados miseráveis , o mesmo agora tem que proteger sua mãe da vingança. Dessa forma, Gang-Do acaba conhecendo o peso dos seus atos violentos – o doloroso processo de humanização pelo qual passam todos os personagens da carreira do cineasta.

É quase impossível entre ocidentais não associar o nome do filme diretamente com o tema Pietà da arte cristã, sendo a mais famosa a escultura de Michelangelo que reside no Vaticano; a representação de um Cristo morto nos braços da Virgem Maria encontra um paralelo quase perverso e para lá de psicologizado nesse filme sul-coreano. Não há o Cordeiro de Deus, mas um homem violento que procura pelos braços maternos a sua vida toda. Não há a Virgem Maria, a santa mãe dos cristãos, mas uma mulher covarde, confusa mas ao mesmo tempo obstinada pela redenção.

Kim Ki Duk, para o bem e para o mal, encontrou uma maneira de filmar inconfundível: seu formalismo seco, trabalhando com uma paleta cromática dura e demarcada cria em conjunto com sua câmera tensa e inconstante uma atmosfera personalíssima, claustrofóbica e quase irrespirável, se valendo tanto de planos parados que apostam em uma composição simples mas extremamente pensada de dois ou três elementos proporcionais marcantes quanto de uma movimentação de eixo “errada” para os padrões clássicos, quase feia, mas que, em muitos momentos, reforçam visualmente a tensão psicológica que emana de seus personagens – sempre de maneira expansiva, como manda a escola de atuação coreana.

Sem muitos filtros ou grandes efeitos, a violência de Duk é “maltratada”, praticamente anti-estilizada: os estragos físicos só são vistos por detalhes ou por conseqüência, mas o ato violento é sempre filmado de maneira direta, sem cortes ou alteração na velocidade da filmagem que valorizem cada ação: como a violência real a qual pouco nos acostumamos, ela é repentina, explosiva, surge do silêncio e some em um outro instante. Essa compreensão da violência como um ato gratuito em sua existência mais profunda é o que torna Duk – e tantos de seus compatriotas – diretores tão impactantes no trato dado a ela.

Mas talvez, assim como acontece no cinema de Chan-Wook Park, essa maneira tão única de se filmar também tem seu lado negativo: se o formalismo direto e agressivo é sempre o mesmo, há também o risco do conformismo estético-narrativo. Os filmes de Kim Ki-Duk, com o passar do tempo, apresentam cada vez mais como maior ponto fraco a sensação de homogeneidade. Não a homogeneidade que sabe se manter heterogênea, de diretores como Brian De Palma ou John Carpenter ou mesmo o conterrâneo de Duk e Park, Bong Joon-Ho, que sempre souberam se renovar mesmo sempre filmando temas muito parecidos; Duk padece da sensação “samba de uma nota só”. Assistir seus filmes isoladamente talvez seja mais interessante do que acompanhar sua carreira como diretor, que não de hoje vem apresentando desgastes por uma excessiva repetição.

Claro que o filme passa longe de ser ruim – ainda que não seja das melhores obras do diretor, continua sendo, no mínimo, uma experiência impactante mesmo que o seu ato final descambe para uma melodramática e até desnecessária história de vingança que traía um filme tão interessante – onde o rito de humanização de Gang-Do se dá através de um estupro incestuoso; a violência, como princípio alienante, isola seus indivíduos do resto do mundo e essa é uma desgraça recorrente no universo do cinema coreano, tanto do icônico vingador Oh Dae Su de Oldboy (idem, 2003) ou do seu companheiro de desgraça mais desconhecido Soo-Hyun, de Eu Vi o Diabo (Akmareul boattda, 2010); é justamente essa ultraviolência tanto o catalisador da desgraça e da solidão de seus personagens quanto sua única maneira de se revoltar, expressar seus medos, angústias e carências.

Não é de hoje que o cinema da Coréia do Sul marca presença, praticamente todo ano com uma obra notável, como um dos mais interessantes estética e narrativamente surgidos nesse início de século. Pietá talvez não seja um dos seus melhores exemplares, mas só reafirma esse grupo de realizadores como singulares e únicos na abordagem tanto temática – vingança, violência e amor são um trinômio constante e desesperado desses filmes – os modos singulares que essas histórias foram narradas já se tornaram até um padrão qualitativo no inconsciente popular. E Duk, um dos primeiros da leva, ainda se mantém em forma – Pietá ganhou o Leão de Ouro como outro atestado inegável de uma leva de filmes que, daqui a poucas décadas, serão lembrados como uma das grandes gerações do cinema recente.

Visto no 14º Festival do Rio

Comentários (8)

Ravel Macedo | domingo, 17 de Março de 2013 - 18:08

vi nada dele ainda também, acho que vou começar por este.

Adriano Augusto dos Santos | segunda-feira, 18 de Março de 2013 - 08:19

É interessante como sempre,suas cenas não falham mas é seu pior.
Se não me engano fez uns 14,15... e todos são melhores.

Patricia Alves Tinoco | segunda-feira, 17 de Fevereiro de 2014 - 09:33

Eu assisti a Primavera,Verão,Outono,Inverno...E Primavera;a Casa Vazia;a Pietà e a Time-O Amor Contra A Passagem Do Tempo e não acho que a temática seja igual,sequer parecida.Vejo e revejo os filmes deste grande diretor com o mesmo prazer de sempre.
Também não acho que a filmografia de Bong Joon-ho tenha temas semelhantes.Assisti a O Hospedeiro,a Mother-A Busca Pela Verdade e a Memórias De Um Assassino.Acho que eles \"sambam\"muito bem e aproveitando todas as notas disponíveis.

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