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Críticas

Cineplayers

Olhares multiplicados pela percepção.

9,0
O cinema do mundo está pedindo equidade racial e de gênero. O recém terminado Festival de Brasília gritou isso pelo segundo ano consecutivo, e Hollywood não tem feito outra coisa nos últimos anos, em exemplares no geral muito bem sucedidos. Desde 12 Anos de Escravidão até Moonlight, passando por Estrelas Além do Tempo e Histórias Cruzadas, entre muitos outros, a população afro-americana tem reivindicado um lugar para além de onde há muitos anos (décadas?) fora relegado, às comédias comerciais. Com o aparecimento de Corra! ano passado, o cinema mostrou que as questões étnicas ancestralizadas precisavam ser discutidas, e que havia qualidade narrativa suficiente para que um filme fosse além do panfleto. Com isso chegamos a Ponto Cego, cujo diretor Carlos Lopez Estrada mostra que o cinema mais uma vez pode agregar linguagem cinematográfica a discursos sociais, saindo ambos potencializados.

O filme parte de um lugar comum narrativo e se desenvolve para muito além do que esperamos dessa mesma forma: a amizade entre dois jovens adultos que cresceram juntos no mesmo bairro, que expandiu suas características e hoje vive em estado de vigilância por conta da violência. Collin é negro, Miles é branco. Desde a infância, essa amizade foi construída em cima da tensão latente do ambiente que os cercava, mas, quando os conhecemos, Collin está há três dias de terminar sua liberdade condicional e Miles está enfrentando os desafios de ser pai e domar sua própria personalidade, de características conflitantes. Collin é testemunha de um assassinato na noite do antepenúltimo dia restante, um policial branco atira pelas costas de um rapaz negro. Durante esses último dias, Collin e Miles em suas rotinas serão postos em cheque nas suas realidades, em revestimento narrativo que não corresponde ao esperado, dando frescor a uma trama que poderia ser traduzida de maneira banal, e aqui explode com impacto.

O filme é a estreia na direção de longas de Estrada, cuja experiência vem de episódios em dois seriados obscuros e muitos videoclipes, e que aqui assume um projeto particular dos protagonistas Daveed Diggs e Rafael Casal, que não apenas estrelam o filme, como também são os autores do roteiro e produtores do projeto. Claramente tem uma autoralidade ligada a eles que perpassa todo o projeto, e isso não por apenas suas assinaturas em várias divisões do projeto. O roteiro de autoria deles reflete as discussões em pauta em todo o país, alargando para a arte o olhar que confronta o racismo e a empatia, e espelhando na tela as inquietações atuais. Exemplo, por trás de possíveis clichês como a eterna culpa que negros sejam implicados na sociedade, o filme reconfigura as situações, reembaralha nossas certezas em relação ao seu movimento e promove um frescor que daria orgulho ao jovem Spike Lee. Diante de certezas no desenrolar das camadas e das resoluções, o manuscrito de Diggs e Casal promove o novo, sem para isso apelar para o irreal. O filme só joga para as possibilidades que foram negadas àquelas pessoas, mas que sempre foram opções reais nos fatos.

O filme não se furta em ousar misturar gêneros na tela, tais como a comédia, o policial, o drama, e até o musical, que vai adquirindo contornos próprios em seu caminhar tendo em vista que um dos protagonistas tem pretensões artísticas, fazendo o filme comportar características como os dos duelos de raps e rimas em determinadas passagens, especialmente em seu clímax, no limite onde cruzam o desespero, a tensão e a saída humanamente possível, com resultado impecável em um momento de profunda reflexão, dentro e fora do filme, que pode apontar contra ou a favor da própria produção de maneira polêmica. O filme também joga imageticamente com metáforas assimiladas com facilidade pelo público, como o cooper diário de Collin por um cemitério, quando ele corre por entre lápides, a fugir delas. Ou os pesadelos envolvendo violência que o assolam desde que ele vê o assassinato, fato esse que muda sua vida; não será a vida de todas as minorias um pesadelo diário? A forma como Miles é apresentado, construído, desconstruído, para no final se transformar na imagem clara que o próprio estereótipo do branco é outro achado, por inserir tantas nuances visuais e narrativas até o momento-chave, outra cena marcante.

O trabalho na direção de Estrada corresponde à responsabilidade colocada nas suas costas, de tratar esse universo com propriedade e urgência, e os desempenhos de Diggs e Casal são igualmente potentes e potencializados um pelo outro e pelo todo. Longe de parecer redundante e/ou autoexplicativa, também o título do filme é reavaliado conforme a trama avança. Partindo da expressão onde uma mesma imagem abstrata pode ter diferentes significados dependendo de quem e como se olha, o filme promove diferentes tipos de absorção da própria expressão, que passa por diversos sentidos até ela própria também ser um exemplo de ponto cego, e ampliar a forma de como vemos cada detalhe que compõe a nossa vida e a dos outros. Isso tudo num aparente modesto longa que chega nas telas falando muito baixinho, e ir crescendo em representatividade e importância a cada nova cena, até se tornar um dos produtos mais interessantes a aportar nos cinemas nessa temporada.

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