Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Crítica social sangrenta.

7,0
A narração em off que acompanha insistentemente Patrick Bateman (Christian Bale) desde os primeiros minutos de Psicopata Americano podem deixar uma má impressão de início como um artifício batido para exemplificar o que a imagem não consegue falar por si só, mas enquanto o personagem pratica seus exercícios diários e passa os mais caros produtos de beleza em seu corpo e rosto e se vangloria por isso, percebemos que essa opção é carregada de um objetivo maior: explanar o interior de Bateman enquanto carro-chefe de uma narrativa onde nosso anti-protagonista será, de fato, o rosto mais íntimo durante os 100 minutos de uma obra sangrenta.

E não sangrenta de um ponto de vista fetichista, como a fama que o filme adquiriu ao longo dos anos possa dar a entender. A polêmica que cercou o filme de Mary Harron (de Um Tiro para Andy Warhol) à época do lançamento certamente encobriu a roupagem crítica do roteiro de Guinevere Turner (que pasmem, mais tarde viria roteirizar o fracasso Bloodrayne) sobre a cultura das aparências e como se dá a construção e libertação de um indivíduo em meio a uma sociedade permeada por máscaras e a sustentabilidade da imagem exterior. Passados tantos anos, tal crítica pode soar datada para os moldes de hoje, e talvez realmente o seja, mas a experiência construída por Harron, apesar de imperfeita, certamente mantém sua peculiaridade. Não à toa, Psicopata Americano segue como uma das principais referências independentes para o tema serial killer.

Superficialmente, a obra basicamente nos fala sobre um bem-sucedido executivo de NY, Patrick Bateman, que carrega uma vida dupla ao se transformar num maníaco assassino à noite que descarrega seu ódio internalizado torturando e matando prostitutas, mendigos e até mesmo colegas executivos do ramo. Quando começa a ser investigado pelo detetive Donald Kimball (Willem Dafoe), Bateman entra numa espiral crescente de deturpação mental que começa a levá-lo ladeira abaixo em seu convívio social.

Debaixo desta capa de “filme para mexer com os nervos” (algo que realmente o faz), diretora e roteirista criam camadas pertinentes e palpáveis sobre a individualidade que cerca nosso convívio social, o que certamente torna Psicopata Americano um estudo menos datado do que aparenta à princípio. E para falar da individualidade e da disputa hierárquica que cerca esse convívio, o roteiro elabora uma alegoria inteligentíssima sobre o design do cartão de visitas de Bateman e seus amigos executivos, e isso não apenas enaltece o simbolismo fálico da sub-trama (afinal, vivemos num mundo historicamente ditado por homens), como esclarece a superficialidade desse narcisismo em sociedade: todos os cartões parecem exatamente iguais, mas cada qual em busca de uma particularidade que busquem diferenciá-los ou engrandecê-los entre si. Consumido por esse vício constante, Patrick é o um que irá descarregar suas frustrações e tensões através de sexo e machadadas.

Essa mentalidade individualista, por sinal, fora o que muito marcou a sociedade norte-americana nos anos 80, muito devido ao capitalismo retratado no didatismo de Wall Street: Poder e Cobiça, apenas para citar um exemplo. Porém, claro, o assunto é ainda mais universal e atual passado tantos estes anos, mas não é de estranhar o visual oitentista da obra de Harron, que passeia por locações e figurinos que ambientam a decaída mental de de Bateman numa época que ainda encontra fortes reflexos nos tempos de hoje, algo ressaltado ainda mais pelas canções clássicas que passeiam durante o filme (e reparem em como Bateman verbaliza sobre Phil Collins) e uma trilha sonora que, em momentos propositais, se rende a identidade slasher das franquias de assassinos em série que inundaram os cinemas nos anos 80. E acredite, tudo isso ainda acompanhado por toques de humor negro sutilmente inseridos que funcionam com precisão de forma a satirizar a própria análise social da obra. Psicopata Americano é um filme que ousa sobre si mesmo.

Mais notável ainda é a construção elaborada em cima de Bateman, cujo apartamento esbranquiçado e mergulhado numa ausência de lembranças ou objetos pessoais evidencia a falta de personalidade própria do personagem, em contraponto à sua perfeição física e status social. Da mesma forma, a presença da noiva de Bateman, Evelyn (Reese Whiterspoon antes de ser a queridinha da América), tão superficial quanto, é perfeitamente necessária para explanar a incompatibilidade de Bateman com a normalidade, ou até mesmo uma forma de mascarar sua real personalidade. 

E diante de tal complexidade, não haveria como tal personagem funcionar em cena, mesmo em seus momentos mais farsescos, sem um intérprete à altura e entregue ao papel. Desencorajado por muitos na época para não aceitar o desafio, Christian Bale é metódico e exemplar ao acompanhar a mesma sintonia da construção do roteiro de Guinevere, soando ameaçador, humano e engraçado quando necessário, num grande exemplo de como uma performance equilibrada pode fazer toda a diferença na catarse de uma obra.

É uma pena, portanto, que o filme se desespere em seus 15 minutos finais, quando tenta encontrar para si um desfecho satisfatório e que vise agradar gregos e troianos. A tentativa é louvável e não chega a prejudicar gravemente o resultado, mas são fortes momentos de desequilíbrio narrativo e criativo que ficam difíceis de ignorar.

De qualquer forma, são tropeços que não diminuem o impacto geral de Psicopata Americano, um thriller absolutamente eficiente em sua reflexão sobre os demônios interiores fomentados por uma sociedade consumista, capitalista e apoiada na exposição de reflexos que pouco condizem com seus verdadeiros eu.

Comentários (0)

Faça login para comentar.