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Críticas

Cineplayers

Um filme que justifica a fama (mesmo que póstuma) do diretor Mikio Naruse. Maravilhoso!

9,0

Quando a Mulher Sobe a Escada começa com uma das mais elegantes aberturas do cinema em todos os tempos, um show de estilo, pureza, estética e bom gosto, seja pelos estilizados letreiros em japonês, as imagens, um extraordinário preto e branco que capta o bairro boêmio de Tóquio, seja pela música, inclassificável e belíssima, alguma coisa entre o jazz e os tambores japoneses, do compositor Toshiro Mayuzumi. E o melhor é que todo esse aparato não se restringirá à abertura e vai continuar pelos próximos 110 minutos, nessa maravilha do cinema japonês que fundou a mística em torno de seu diretor, Mikio Naruse.

É um filme raro, pois foi feito para um público adulto, maduro e exigente, e vai entregar a seus espectadores um conteúdo à altura das expectativas. Conta a história de um hostess de bar que tem como função entreter os endinheirados que vão ali em busca de diversão. Na descrição que o site IMDB faz da personagem, o autor cometeu a grosseria de classificá-la de ''geisha'', mas ela não é uma prostituta, nem faz sexo com os clientes (normal, as platéias de hoje, viciadas na estética maniqueísta de Hollywood, têm dificuldade em lidar com a ambigüidade). Ela chegou aos 30 anos, a beleza se esvai dia a dia, e nessa idade ela precisa tomar uma decisão: ou se casar com um dos clientes (ou se tornar amante deles) ou abrir seu próprio bar.

A heroína Keiko, interpretada de forma magistral por Hideko Takamine, ela própria figurinista do filme, precisa escolher entre um cliente gordinho que é atraído por ela ou continuar a esperar pela paixão da sua vida, um rico industrial que é, claro, o mais assediado do pedaço. É isso ou abrir o próprio bar, empreendimento que ela vai dar início, tendo ao seu lado um barmen que é apaixonado por ela.

Como estamos no território dos filmes sérios e com intenção de discutir a fundo as questões contemporâneas, mais vale a forma como ela vê a situação do que maneira que ela fará para sair das enrascadas. Ficamos sabendo que ela foi parar ali pois seu primeiro marido morreu. Ela tem um padrão de vida acima de suas posses e um problema a resolver: seu irmão advogado está para ser preso, pois deve dinheiro a um agiota, e seu sobrinho, portador da poliomelite, precisa fazer uma operação que custa caro para voltar a andar. A família pensa que ela tem dinheiro e a pressiona para pagar.

Enquanto mostra as agruras de sua personagem principal, tão bem delineada por um roteiro realmente impecável, Naruse recria em estúdio os bares da região boêmia e, a partir deles, vai mostrando a transformação do Japão, que nos anos 50 passava pelo milagre econômico e, com ele, abria-se para o exterior. Tanto que as concorrentes de Keiko já haviam aposentado o kimono e estavam lhe roubando seus clientes com bares mais próximos da cultura ocidental e usando acompanhantes ''que não vão para casa nem de táxi nem de trem'', ou seja, iam para hotéis com os clientes.

Encurralada pelas dívidas, pela idade, pela família, pela saudade do marido, pela falta de perspectiva e vendo todos a sua volta fazendo todo tipo de sordidez para sobreviver (e ela agüenta tudo com um estoicismo incrível), Keiko desenvolve uma úlcera enquanto vê a cultura japonesa sendo substituída pela força do dinheiro e pelos novos-ricos hedonistas.

Naruse começou no cinema mudo e dirigiu, no regime industrial do cinema japonês, mais de 90 filmes. Os especialistas em sua obra dizem (estou me fiando em Catherine Russel, professora de cinema da Concordia University de Montréal, que assina o extenso texto do DVD da Criterion Collection) que o melhor de sua produção está nos anos 50 (os filmes que foram lançados no Brasil, veja lista aqui no Cine Players) e que Quando a Mulher Sobe a Escada é o ponto culminante de sua obra, pois para a pesquisadora o retrato da baixa classe média é seu forte e aqui atingiu o seu ápice mesmo que não esteja o filme ambientado nas empobrecidas regiões que povoam seus demais filmes.

Mas o que mais atrai num filme desse é mesmo os dilemas da protagonista, que praticamente todo profissional liberal da classe média em todo o mundo em qualquer época já passou. Com um refinamento inigualável, uma ternura enorme pelos interessantes coadjuvantes do entorno de Keiko, seus sonhos inconfessáveis, suas pequenas decepções diárias, a descoberta das traições, tudo contribui para aumentar o desespero de Keiko, mas ela sempre segue em frente, com seu estoicismo imbatível (e redentor; invejável, eu acrescentaria), que o diretor mescla com um tom de comédia e melancolia que justificam sim a fama póstuma que o diretor tem hoje, quase 30 anos após sua morte. Uma redescoberta e tanto para esse cineasta que estava perdido na barafunda da produção descontrolada dos estúdios japoneses.

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