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Críticas

Cineplayers

Em uma das maiores comédias de Hollywood, homens travestidos servem de analogia à depressão americana e ao caráter ludibriador do cinema.

9,0

“Ninguém é perfeito.”
Osgood Fielding III, personagem de Quanto Mais Quente Melhor

 

Quanto Mais Quente Melhor é um filme satírico sobre os signos da sociedade, um olhar exterior que só alguém como Billy Wilder, um estrangeiro na América, poderia proporcionar ao cinema de Hollywood.  Considerado pelo próprio diretor como sua obra-prima, é de uma rara e bem dosada ironia.

Concentra uma infinidade de temas frequentemente presentes nos seus trabalhos – curiosamente, tanto de suas comédias escrachadas quanto de seus filmes sérios. Fazendo um pequeno apanhado, há aqui desde o alcoolismo, a fuga, a tentação, o interesse material nas relações conjugais, até mesmo os bastidores do mundo do entretenimento. Tudo tratado com muito humor, além de perspicácia para lidar com referências que preenchem o imaginário coletivo e cinematográfico, tais como gângsteres, homens travestidos e mulheres ingênuas e infantilizadas, mas irresistivelmente atraentes.

Lançado em 1959, esta grande comédia apresenta um enredo que data de 1929, um dos anos mais emblemáticos da história norte-americana, marcado pelo crash da bolsa de valores, o qual marca o fim dos loucos anos 20 (os chamados roaring twenties) e o início da grande depressão econômica. Situação que agravaria o contrabando de bebidas durante a Lei Seca (que começou em 1920 e se estendeu até 1933), fomentando todo um comércio clandestino voltado ao consumo de álcool, enriquecendo o crime organizado, liderado por mafiosos como o lendário Al Capone.

Partindo deste contexto, o roteiro de Quanto Mais Quente Melhor traz a história de Joe (Tony Curtis) e Jerry (Jack Lemmon), dois músicos de orquestras de jazz que se apresentavam nestes inferninhos ilegais da Lei Seca, mas que por cargas do destino, acabam sendo involuntariamente testemunhas de um massacre ocorrido no dia de São Valentim. Perseguidos implacavelmente pelos gângsteres autores do crime, se disfarçam de mulheres e fogem para Miami, na Flórida, onde ingressam numa orquestra de mulheres, que conta com a cantora Sugar Kane, vivida por ninguém menos que Marylin Monroe no auge de sua carreira e popularidade.

A infinidade de situações engraçadas e inusitadas que tal jornada dos homens travestidos poderá acarretar beira um humor escatológico. Assim como Joe, agora “Josephine”, irá cair de amores pela sensualidade de Monroe, Jerry como “Daphne” balançará o coração de Osgood Fielding III (Joe E. Brown), um solitário milionário. A troca de identidade e a confusão entre os gêneros são tratadas com muita graciosidade por Wilder, que consegue extrair de forma inteligente o aspecto cômico de relações conjugais improváveis.  Se comentar conceitos como mudança de sexo e travestis ainda é um tabu para o cinema, na época esta abordagem realizada pelo viés da comédia arrebatou grandes bilheterias, e um sucesso praticamente unânime da crítica. Numa enquete promovida pelo historiador canadense John Kobal junto a 70 críticos de todo o mundo, Quanto Mais Quente Melhor foi eleito como o melhor filme de todos os tempos. Em 2000, foi eleito como a melhor comédia americana de todos os tempos pelo AFI – American Film Institute.

Motivos para tanta celebração, o principal deles são os diálogos inspirados, sardônicos, concebidos por Wilder em sua segunda parceria com I.A.L. "Iz" Diamond, que era seu grande parceiro na elaboração de roteiros (outro foi Charles Brackett). Inspirado na comédia alemã Fanfaren der Liebe (1951), o filme é repleto de gags impagáveis e situações construídas com brilhantismo. Wilder queria evitar que os personagens ficassem simplesmente caricatos; era necessário que uma tensão sexual existisse entre os travestidos e as mulheres de forma verossímil e cômica. O resultado é uma trama absolutamente original para a época, que quebra paradigmas do gênero na medida em que fazem do transformismo e da alternância de identidade não só elementos de comédia, mas analogias ao próprio mundo do espetáculo e do cinema. O que é o cinema se não o engano ao espectador, em que atores incorporam novos personagens para representar na tela?

O próprio tema da Depressão norte-americana ganha uma nuance diferente. O tema foi caro para a literatura, saciou de F. Scott Fitzgerald a John Steinbeck, mas tocou também alguns dos maiores diretores de Hollywood da Era de Ouro. Se Howard Hawks deixou seu testamento sobre o tema com Scarface - A Vergonha de uma Nação (1932), um filme gângster, John Ford deu seu veredito sobre o período com As Vinhas da Ira (1940), um drama social, coube a Wilder buscar uma vertente cômica para retratar esse conturbado período de crise na América, não somente financeira, mas de identidade do país inclusive.

Dentre as curiosidades, merece destaque a cena beijo entre Curtis (desta vez passando-se por um milionário) e Monroe, que teve de ser regravada centenas de vezes. O ator chegou a declarar depois que teria sido mais fácil beijar Adolf Hitler. Monroe podia estar no auge da forma física, numa convincente interpretação de uma desamparada cantora de orquestra, mas sua vida pessoal já estava em pleno declínio. Tinha dificuldades para se concentrar, errava os diálogos, obrigava Wilder a repetir as cenas dezenas de vezes. Chegou a ser necessário colocar frases em gavetas, para que se lembrasse das falas. Ele dizia que era desgastante, mas que tudo era superado quando via Marilyn na tela. A atriz morreria apenas 2 anos depois, aos 36 anos.

Não é gratuito dizer que Quanto Mais Quente Melhor é um filme eterno, uma daquelas obras que ficaram para sempre como uma das grandes realizações do cinema. Seu legado é vasto, uma vez que pode ser associado a desde os filmes mais sérios de Pedro Almodóvar, até terríveis comédias pastelão de Hollywood, como As Branquelas (2004), passando até por diversas telenovelas brasileiras – Gilberto Braga se declara um grande fã e influenciado por Wilder.

Ao fim do filme, numa das frases mais citadas do cinema, o personagem do milionário Osgood Fielding III (Joe E. Brown) diz, ao descobrir que seu objeto de desejo não é uma mulher mas sim um homem: “Ninguém é perfeito”. Críticos passaram a dizer que os homens podem ser imperfeitos nas comédias de Billy Wilder, mas elas são perfeitas. Se é um exagero ou não, o fato é que Quanto Mais Quente Melhor chega muito próximo disso.

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