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Críticas

Cineplayers

Uma história de amor em um contexto repleto de significações e ressonâncias com os tempos atuais.

8,0

Há determinado circo midiático, ou melhor, paixões fervorosas relacionadas aos meios de comunicação, que vêm e pairam sobre o filme Quem Quer Ser Um Milionário?.  A primeira, mais superficial, fácil e talvez a mais em voga, está fora do filme: refere-se ao ânimo exacerbado com que a obra foi recebida pela crítica e pelo público especializado. O filme tem uma carreira impressionante, avassaladora e impecável: passou como um trator de esteira por todos os seus concorrentes em todas as grandes premiações do cinema mundial, ganhando praticamente tudo até o momento. Um verdadeiro fenômeno. Entretanto, quando se fala em circo midiático relacionado ao filme, é possível tatear uma conotação mais dinâmica, vislumbrar um elo entre esses tempos de sociedade do espetáculo como a própria temática deste longa, e não só o hype que acomete a repercussão do filme em si. O sucesso nas premiações americanas também surpreende por ser um filme cuja trama está situada em um universo atípico às grandes produções do cinema de Hollywood – emprego de língua estrangeira e presença de atores indianos são somente pontas do iceberg.

Quem Quer Ser Um Milionário? traz a história de um jovem indiano chamado Jamal Malik (interpretado por Dev Patel), pobre, órfão, crescido nas favelas de Mumbai ombro à ombro com criminosos e escroques ao melhor estilo Cidade de Deus, virando-se em mil para sobreviver e ao menos manter sua dignidade perante um ambiente predominantemente hostil. Há seu irmão, Salim, que talvez não compartilhe da mesma integridade, e ainda Latika, sua amiga de infância que tende a tornar-se uma pessoa mais do que especial para o protagonista. O ponto de virada na sua vida reside na oportunidade de participar do programa televisivo “Who Wants to Be a Millionaire?”, onde, em um país assolado pela falta de perspectiva, o programa significa uma rara chance para um único indivíduo perdido na multidão de bilhões de pessoas poder ter alguma prospecção e relevância perante os demais. E não é novidade que, para a natureza humana, o que é o sucesso de uns pode bem ser o desagrado de outros.

Quem lê essa breve introdução talvez deva, com certa razão, achar a trama trivial, além de abismar-se com certa sensação de que lá vem mais um déjà vu incômodo. Não é nada preocupante. O grande mérito do diretor Danny Boyle neste filme, assim como em outros que já dirigiu tendo êxito como Trainspotting - Sem Limites, é o tratamento conferido à história, ou seja, simplesmente o modo como a trama é narrada e o ritmo em que tudo é exposto. Sabiamente neste caso, embora o filme demonstre uma direção original e repleta de flashbacks, Boyle conseguiu fugir do estereótipo do diretor “moderninho”, que quer fazer um quebra-cabeça não-linear repleto de pirotecnias e maneirismos estéticos que são um fim e não um meio para contar uma boa história. Aqui Boyle lançar-se com uma obra tocante, persuasiva e que, em uma bem executada tripla temporalidade (detalhá-las seria fazer um terrível desmancha prazer), alcança e realça um dinamismo na sua forma que é um fator primordial para a tão alardeada qualidade desta produção. Além de ser essencial para esta história.

No início da projeção, quando de imediato percebe-se o predomínio das tonalidades azuis nos becos da periferia, meninos pobres correndo descalços em meios aos casebres de favela, tudo sob o som de uma batucada e visto sob o plano da câmera instável, além da edição ágil, fica mais do que evidente a influência não só do já citado Cidade de Deus, mas de todo o sub-gênero, se é que podemos chamar assim, dos “favela movies” que afloraram no Brasil e ao redor do planeta nestes anos da década de 2000 – ainda que a câmera instável esteja muito longe de ser uma novidade. A Índia exibida é, ao contrário da visão folclórica habitual, um país urbano e culturalmente cosmopolita, igualmente contagiado pelos refrigerantes, pelo dólar e pelas redes de comunicação. Há também a explosão demográfica, o caos da organização social, esta também dominada pelo crime organizado. Mas aos poucos, à medida que a trama vai naturalmente desabrochando e apresentando suas nuances, fica nítido que a intenção não é, primordialmente, levar ao mundo um filme de cunho social, que tem como premissa aquele cinema que quer fazer debate sobre a miséria e a corrupção, mesmo estes sendo componentes da trama. Os protestos que o filme tem gerado na Índia deixam claro que o filme inevitavelmente incomoda e toca em feridas sociais, e, por conseguinte ocasiona discussões referentes a esses tópicos, mas no decorrer das cenas nota-se que a pobreza é apenas o cenário de fundo para, em primeira instância, um filme que aborda uma história de amor. E é exatamente este contexto que fará deste romance entre o jovem casal indiano algo especial.

A motivação do personagem de Jamal ao ir participar do programa de tevê, o “show do milhão” dos indianos, não é o dinheiro, mas sim o amor – convencionalmente é o que público de cinema espera e aceita de todo protagonista “bom caráter”.  Ali o personagem teria visibilidade ideal para poder reencontrar-se com a pessoa amada e, por conseqüência, receber o prêmio que lhe possibilitaria poder finalmente concretizar seus sonhos. É exatamente aí que reside mais um ponto, mais um viés de análise para o filme. Será que, para que uma pessoa possa de fato “existir” e ser amada, além de do acúmulo de riquezas financeiras, seja necessário aparecer na mídia, ser popular para ser admirado? Explicando melhor: será que o velho e irônico bordão “consumo, logo existo” foi engolido, ou melhor, complementado pelo “estou na mídia, logo existo?”. O oba-oba das redes de televisão com seus intermináveis reality shows, prometendo uma vida de artista, de fama e fortuna, uma vingança por uma vida menos ordinária, somando-se a paranóia juvenil pela exposição, a necessidade crescente de ter de existir e aparecer em seus incontáveis sites de relacionamentos, blogs, fotologs e companhia não só servem de matéria-prima para este filme de Danny Boyle, como o filme é um direto reflexo desses tempos. Não obstante a luta por dinheiro e visibilidade, estes ainda teriam de ser os meios para se chegar ao amor. Pessoalmente me remeteu a idéia de que Jamal parece estar fadado à sina já cantada pelos Beach Boys em 1966 na música chamada “That’s Not Me”: “I could try to be big in the eyes of the world, what matters to me is what I could be to just one girl” [Eu poderia tentar parecer grande aos olhos do mundo, mas o que me importa é como vou parecer para uma só garota].

Difícil pensar, em 2009, nos fins desta primeira década de novo século, num filme equiparável com tamanho poder de síntese que faz de nossos tempos de hipermídia, de espetacularização da realidade e avalanches de informações desnecessárias. Este é um belo exeplar de obra que é reflexo de sua época.  Como já dito, embora aparentemente trivial, Quem Quer Ser Um Milionário? traz uma gama de “infinitas possibilidades” de aspectos para se refletir. O fato de Jamal, não por acaso, trabalhar em um serviço de call center, e conforme aponta o autor Thomas Friedman no livro best seller “O Mundo é Plano” que grande parte dos call centers dos EUA estão na Índia, por si só já permite divagações acerca da globalização. A intertextualidade com o cinema de Bollywood, a gigante indústria de cinema da Índia. A exploração de crianças por quadrilhas para o trabalho infantil – incluindo a mendicância, tráfico de drogas e prostituição. A idéia implícita de que o conhecimento não está estanque em livros, enciclopédias, instituições de ensino, ou mesmo na internet, mas perambulando nas ruas, flertando com a experiência de vida, e que talvez só esse conhecimento seja o verdadeiramente válido para a ascensão também é outro aspecto a se discutir. Inclusive tem se discutido bastante se o que tornou esse filme um sucesso teria sido em virtude do contexto de crise mundial que vivenciamos hoje, onde um personagem, em meio a tantas adversidades (inclusive financeiras), conseguiu superar suas dificuldades em princípio intransponíveis - e esse otimismo seria contagiante. Há também quem diga que a vitória de Jamal reflete o otimismo mundial perante a vitória de Barack Obama. Se é senso de oportunidade ou apenas coincidências, só o tempo irá dizer.

Por fim, a idéia de que tudo e todos estão ligados em uma espécie de rede, um fio condutor que une a realidade a uma espécie de infalível destino, que talvez só os sábios conheçam, por darem ouvidos às suas vozes interiores. O pensador americano Ralph Waldo Emerson dizia que o homem deve aprender a identificar e observar o raio de luz interior que lhe atravessa a mente, mais do que o lustro do firmamento de bardos e sábios. Sem dúvida este é o grande truque de Jamal no jogo da vida. Felizmente o diretor Danny Boyle não fez um filme formulaico, ainda que conte com certos clichês, e dosou muito bem o romance do casal com um contexto muito bem amarrado e coeso com a história de amor central. Esta é, certamente, a riqueza que faz de Jamal um milionário.

Comentários (2)

Alexandre Marcello de Figueiredo | quarta-feira, 08 de Outubro de 2014 - 23:40

Não gostei e o filme não merecia o Oscar de melhor filme. "Milk - A Voz da Igualdade" com Sean Penn é melhor.

Allan de Morais | quinta-feira, 16 de Maio de 2019 - 01:19

Acabei de rever esse filme e achei essa análise perfeita para o mesmo. Ainda mais no que diz respeito a sua síntese ao contexto histórico. Isso sendo exatamente após um período de 10 anos. O filme permanece sendo espetacular em suas abordagens.

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