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Críticas

Cineplayers

Longa jornada noite adentro.

8,5

Logo na sequência de abertura de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? uma gargalhada histérica rompe o silêncio da noite e denuncia a aproximação incômoda de Martha (Elizabeth Taylor), já levemente embriagada e sendo arrastada por seu marido George (Richard Burton) até sua casa, onde receberão para uma saideira a visita do jovem casal Nick (George Segal) e Honey (Sandy Dennis). A gargalhada é o prenúncio do que enfrentaremos pela frente no filme, uma sucessão de silêncios rompidos por inúmeras manifestações berrantes entre o quarteto de personagens, em uma lavação de roupa suja que entrou para história do cinema por colocar Mike Nichols no mapa e ainda trazer a desconstrução da aura mítica de glamour que rodeava a até então estrela magna da indústria hollywoodiana, Elizabeth Taylor.

Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? é um trabalho importante por diversos motivos, e lembrado até hoje como um dos mais irônicos e cínicos retratos do casamento, questionando a hipocrisia das relações sociais e as fundações da instituição matrimonial. A premiada peça original, escrita por Edward Albee é, por excelência, uma história de raiz teatral, por conta de sua narrativa toda fundamentada nos diálogos e ancorada no trabalho dos atores. Facilmente, nas mãos de um diretor inexperiente, se tornaria um desses teatros filmados e carentes de uma identidade visual que o valorizasse como cinema. Mike Nichols, um alemão novato e desconhecido, parecia uma aposta arriscada demais, visto que teria à sua disposição uma trama forte e um elenco estrelado pelo casal-vinte da época. A responsabilidade era tremenda, até porque Elizabeth Taylor passaria por um processo de descaracterização para viver uma personagem vinte anos mais velha, e contava com um filme à altura de seu esforço para recoloca-la no mapa após uma maré baixa em sua carreira.

A confiança dada a Nichols surtiu um efeito mais do que positivo. Não apenas pelo frenesi que o filme causou (todos queriam ver o casal ioiô Burton e Taylor levando para as telonas um pouco [ou muito] de suas escandalosas brigas pessoais), mas principalmente pelo notório domínio do cineasta sobre cada aspecto da produção que Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? se destacou. Ao invés de percorrer o caminho fácil de jogar todo o filme nas costas do elenco, o diretor se faz presente em cada enquadramento e prepara o terreno para que Taylor simplesmente arrase em cada minuto em cena, guiando a atriz no limite do overacting sem jamais deixá-la ultrapassar o tom correto da personagem. É preciso lembrar que até então Taylor era mais conhecida por seus papéis de mocinhas jovens e atuava segundo a escola tradicional dos estúdios de Hollywood. Sua aparição como Martha foi um choque em todos os sentidos; primeiro pela aparência repulsiva (gorda, descabelada, desbocada, mal vestida), e segundo pelo método realista que aplicou para compor a personagem, o que potencializou o efeito de seu desempenho a um nível exponencial. Seria muito fácil para a atriz, com toda a sua persona marcante, engolir o papel e surgir como uma caricatura grotesca, mas graças a Nichols ela brilha em uma atuação poderosa e dentro da modulação exigida pela personagem.

Os demais atores, inclusive Burton, servem como escada para que Taylor ocupe o centro do picadeiro, enquanto Nichols submerge toda a trama em uma atmosfera sombria, amplificada pelo fato de que toda a ação se desenrola no período de uma única e interminável noite. A fotografia em preto e branco é um recurso usado para realçar o caráter dúbio de cada personagem e a iluminação aos poucos atua em um processo para destrinchar cada um ali até o âmago, e de repente estamos diante de quatro adultos agindo como animais, bêbados e desbocados colocando todas as cartas na mesa. A princípio, enquanto os quatro ainda mantêm algum resquício de civilidade e seguem as hipocrisias das normas sociais, Nichols se mantém em uma direção elegante, classuda, quase à moda antiga, nos fazendo lembrar outras grandes adaptações de peças, ao nível de Uma Rua Chamada Pecado ou Gata em Teto de Zinco Quente. No entanto, quando as máscaras começam a cair, a noite parece mais escura, as luzes mais bruxuleantes, o ritmo da câmera mais enérgico e os planos mais desfocados. É como se toda a atmosfera começasse a desabar junto com o estado psicológico e emocional cada vez mais crítico dos personagens. Isso confere uma forte identidade visual ao filme, e o valida como uma obra que acrescenta à peça original, ao invés de apenas reproduzi-la.

Não apenas a primeira produção de Nichols, o filme serviu como prenúncio de sua habilidade sem igual na direção de atores (futuramente arrancaria desempenhos memoráveis de Dustin Hoffman, Anne Bancroft, Jack Nicholson, Ann-Margret, Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Julia Roberts, Clive Owen, Natalie Portman, Jude Law e Al Pacino). Também marca sua estréia no tema que mais funcionaria bem sob sua lente: a fragilidade das relações humanas. Décadas mais tarde, em Closer - Perto Demais, ele voltaria a adaptar uma peça teatral em torno de quatro personagens, reiterando a mensagem de Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? sobre a verdadeira natureza dessas relações quando analisadas de perto. Assim como na proposta de Closer, aqui ele aos poucos vai adentrando cada vez mais na intimidade de Martha, George, Sandy e Nick, e com isso revela sem dó e cruamente a alma cheia de cicatrizes em aberto de cada um ali. Ao final, depois de duas horas de xingamentos e barracos, o êxtase consome a todos – inclusive espectador – e o que sobra por baixo das ruínas são os destroços de dois corações partidos, castigados pela vida e condenados a viver em um eterno laço de amor, ódio, cumplicidade e dor.

- Quem tem medo de Virgínia Woolf, Virgínia Woolf, Virgínia Woolf?
- Eu tenho, George. Eu tenho.
 

Comentários (5)

Nilmar Souza | terça-feira, 16 de Dezembro de 2014 - 16:55

Grande texto, Heitor. Há tempos que esperava um escrito pra esse aqui. Só diálogos memoráveis.

Paula Lucatelli | terça-feira, 16 de Dezembro de 2014 - 21:00

Adorei o subtítulo! Lembra-me um dos mais incríveis estudo de personagens da história do Cinema: Longa Jornada Noite Adentro 😁
Ótima lembrança, Heitor!

Alexandre Baquero Lima | quarta-feira, 17 de Dezembro de 2014 - 14:13

Excelente filme, ótima crítica.

E tem uma referência explícita que Elizabeth Taylor faz à Bette Davis com o bordão: "What a dump!", que é mais conhecido por causa desse filme do que pelo referenciado "Beyond the Forest", de 1949.

Fernanda B | domingo, 21 de Dezembro de 2014 - 12:29

Um dos filmes da minha vida

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