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Críticas

Cineplayers

Um dos raros filmes do cinema a tratar um personagem com distúrbios mentais sem fazê-lo um retardado.

7,0

Rain Man”, obra máxima da carreira de Barry Levinson, faz parte de um sub-gênero bastante perigoso: os dramas sobre doentes mentais. Não raramente, os filmes do estilo costumam cair no ridículo ao utilizar, tanto na composição de suas personagens, quanto no desenvolvimento de sua narrativa, elementos maniqueístas e superficiais que visam, primordialmente, desestabilizar o lado emocional do espectador para que, subseqüentemente, o mesmo venha a comover-se com os clichés habituais utilizados em seus desfechos. Já em “Rain Man”, porém, podemos encontrar justamente o oposto: conduzida com leveza e extrema maturidade, a obra de Levinson consegue trabalhar acerca de um tema sério e polêmico com serenidade e inteligência e, ao mesmo tempo, nos emocionar de forma natural e singela. 

No filme, Tom Cruise interperta um homem que, enquanto partia para um fim de semana de descanso com sua parceira, recebe a notícia de que se pai, com o qual não estabelecia contato há muitos anos, falecera. Mais interessado, devido ao relacionamento de ódio e amargura mantido entre os dois, em receber sua herança do que lamentar a morte de seu genitor, acaba descobrindo que todo o dinheiro, estimado em mais de três milhões de dólares, fora destinado a um portador desconhecido. Para sua surpresa maior, descobre que o homem, na verdade, é seu irmão, um autista que passara a maior parte de sua vida em uma intituição para doentes mentais. Com a intenção de conseguir metade da generosa quantia, foge levando seu irmão à uma viagem e, em meio a ela, acaba descobrindo nele uma peça importante de seu passado, e, conseqüentemente, passa a dar mais valor àquilo que mais desprezava em sua vida: o amor e a família. 

Obviamente, a originalidade não é uma das qualidades mais expressivas da obra. É incontável o número de produções que trazem, como premissa, a história do homem desprezível e egoísta que, aos poucos, passa a ter sua visão da vida reconstituida a partir de sua convivência com alguém especial. Porém, no caso de “Rain Man”, a originalidade excerce um papel insignificante em sua estrutura, já que, inteligentemente, o roteiro jamais tenta parecer singular. Seus maiores méritos encontram-se na forma como a história é contada, e não necessariamente naquilo que é contado. Ou seja, enquanto muitos roteiristas tentam empregar em seus trabalhos arrogantes traços de pseudo-intelectualidade, procurando abordar questões profundas e desenvolver personagens tridimensionais com pretensões de complexidade, Barry Morrow e Ronald Bass, escritores da obra em questão, criam um road-movie dramático emocionante e equilibrado, que consegue, através de seus belíssimos personagens, cativar o espectador de forma impressionante.    

Personagens estes que, mesmo sendo aparentemente estereotipados, revelam-se maravilhosamente interessantes: Charlie Babbit, vivido intensamente por Tom Cruise, prester a tornar-se astro de Hollywood, é, como já frizara anteriormente, apenas mais uma versão de uma personagem já desgastada do gênero. Porém, devido à sutilidade com que o roteiro aborda sua metaforfose, não nos deparamos com uma daquelas mudanças abruptas e incoerentes de personalidade habitualmente vistas: Charlie, enquanto mau-caráter, por assim dizer, apresenta alguns traços daquele que virá a ser Charlie após sua jornada, tornando sua transformação apenas uma adaptação de uma característica de sua personalidade que, sufocada pelos estigmas psicológicos proporcionados pela traumatizante convivência com seu pai, ainda na infância, é desencavada aos poucos à medida que sua relação com Raymond se intensifica.

Enquanto isso, Dustin Hoffman, como Raymond, nos apresenta aquela que, possivelmente, seja a maior e mais complexa atuação de sua carreira (ainda que tenha outras grandes participações, como em “Perdidos na Noite” e “A Primeira Noite de um Homem”). Sua caracterização é irretocável, e até mesmo imprescindível para o funcionamento da obra. Seu caminhar desajeitado, lento e inseguro, seu olhar vago, aparentemente sem qualquer foco, e a voz anasalada, aliados aos trejeitos corriqueiros de pessoas com a mesma condição cerebral, formam um dos conjuntos idiossincráticos mais interessantes da carreira do ator. Ademais, outro ponto interessantíssimo a ser destacado na composição do personagem, é a naturalidade com que é apresentado o problema mental de Raymond. 

Durante toda a duração de “Rain Man”, jamais somos sujeitados a uma análise diagnóstica de suas condições. A complicação psicológica de Raymond é tratada da forma mais natural possível, o que acaba proporcionando uma maior identificação do público para com a personagem. Ele sente, ouve, fala e até mesmo raciocina como qualquer um de nós, e, excetuando suas peripécias acerca de sua facilidade com números e sua memória praticamente infalível, é tratado única e exclusivamente apenas como um ser humano, sem qualquer heterogeinização no tocante ao quadro de personagens, o que é um erro constante em filmes que tratam do assunto (os autistas, no cinema, raramente são vistos como personagens naturais, recebendo características de extrema anormalidade sem que, em contra-peso, possuam referências mais humanas).

Entretanto, toda esta pesada carga moral, quando mostrada de forma séria e desprovida de elementos humorísticos, é extremamente difícil de ser digerida pelo público. Contudo, esta obra de Levinson passa muito longe deste problema: conduzida de forma leve e despretensiosa, a obra conta com diversos momentos de humor e, em alguns deles, nos resguarda suas melhores cenas. Um bom exemplo é a seqüência em que Raymond, sentado no bar de um cassino em Las Vegas, começa a trocar ingênuas paqueras com uma mulher. A cena, que viria a ser uma das últimas antecessoras ao terceiro ato da obra, prepara de forma inteligentíssima o espectados para todas as resoluções dramáticas que acontecerão em seguida. Porém, os momentos de humor não se resumem a pequenas cenas soltas dentro da narrativa. Desde o início, o filme é recheado de momentos engraçados e até mesmo hilariantes, o que torna “Rain Man”, mesmo tendo uma narrativa de clara conotação dramática, um filme divertidíssimo de se ver.

Quanto ao aspecto técnico, que muitas vezes passa despercebido em filmes do gênero, “Rain Man” mantém seu nível de qualidade nas alturas: a direção de Levinson, eficiente e de excelente timing cômico, transforma “Rain Man” em um dos filmes mais sóbrios a retratarem dramas familiares ou doenças mentais, já que, com isso, não permite que a obra, em momento algum, torne-se melodramática demais. Não obstante, não devo esquecer da menção mais do que honrosa à maravilhosa fotografia, essencial para o funcionamento de qualquer road-movie: com planos belos e bastante contidos, consegue transpor com naturalidade os ambientes das diversas locações utilizadas para a obra, acentuando com clareza as características de cada cidade visitada pelos irmãos e, ainda, elevando brilhantemente os belos e intermináveis campos das rodovias norte-americanas.

Enfim, “Rain Man” (título que, por sinal, tem um bonito significado dentro da obra), produção de Barry Levinson vencedora de quatro prêmios da Academia (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator - Dustin Hoffman e Melhor Roteiro), é um dos mais simpáticos e agradáveis road-movies do cinema. Intensamente interpretado, sabe dosar com extrema competência as pretensões dramáticas de sua história com a leveza e a comicidade típicas das obras da década a que pertence. Ademais, ainda é uma das histórias mais lúcidas e inteligentes em retratar a vida e as características de uma pessoa mentalmente debilitada, o que já garante ao filme uma importância ímpar dentre as obras do gênero. É um filme que emociona e diverte de maneira equilibradíssima, e que jamais tenta persuadir o espectador à comoção ou às lágrimas. Dificilmente será encontrada, no cinema contemporâneo, uma obra tão singela e humana quanto esta.

Comentários (1)

Daniel Mendes da Silva Candido | terça-feira, 24 de Julho de 2018 - 11:15

Concordo com quase tudo o que foi apresentado no texto atuação de Dustin Hoffman é o grande trunfo do filme com uma interpretação praticamente impecável da personalidade de um autista; Tom Cruise também capricha vivendo a angústia e o estresse de conviver com uma pessoa diferente, e transmitindo isso de forma natural. A direção também é muito boa quando reproduz os planos do ponto de vista de Raymond... Enfim é uma obra de arte. Mas com respeito ao roteiro ser totalmente agradável, eu acho que não é bem por aí: porque às vezes cansa a repetição do script em algumas questões como assistir programas de TV, hora de dormir, o que deve comer... dá sono. Fora isso a obra é perfeita.

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