Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O natural e o inusitado.

7,5

Ao final de Ricky, se torna difícil deixar de ponderar: não é que realmente o filme é bom? Já estamos acostumados com a presença habitual (no circuito de estréias ou na programação de alguns canais de TV) dos filmes de François Ozon, este diretor francês que não agrada a todos, mas geralmente não ofende ninguém; no entanto, a mistura de elementos estranhos em Ricky parecia sugerir um trabalho bizarro (no pior sentido do termo), ou uma obra no mínimo bastante desequilibrada. É surpreendente que não apenas o aceitamos do jeito que o filme se instaura como também termine por nos contentar diante dessa fantasia inusitada, sem que esta nunca se revele bisonha ou indigesta.

Aos que acompanham a filmografia de Ozon, o filme no início remete a outro de seus títulos filmado na mesma época, O Refúgio (Le Refuge, 2009), onde também investigava os mistérios da maternidade durante o período de uma gestação. Katie (Alexandra Lamy) é uma mãe solteira que trabalha como operária enquanto cuida de sua filha pequena, e ao conhecer Paco (Sergi Lopez), um imigrante espanhol, se relacionam e ela logo engravida. A gestação não ocupa grande parte do Ricky, que se apresenta como um bastante naturalista filme francês em torno da rotina de uma classe média baixa parisiense.

Já é nesse começo uma película que desperta algum interesse, nem melhor ou pior que a média da produção francesa em torno desse material. Os intérpretes (basicamente o casal e a menina que vive com a mãe) são cativantes, e nos prende a atenção o olhar com que a câmera do cineasta observa o desenvolvimento dos seus personagens, o que inclui a desintegração rápida do casal logo após o nascimento da criança. Se em O Refúgio Ozon filmou os meandros de uma gravidez, aqui ele desloca suas lentes para o apego de uma mãe a um recém-nascido.

É quando o fantástico irrompe com naturalidade em meio ao típico filme realista francês que acompanhávamos. Quando a criança se revela um bebê “anormal” com asas que brotam de suas costas, Ricky dá o salto que o eleva entre a produção cinematográfica média de seu país da qual parecia integrar. O grande trunfo de Ozon é fazer com que um material batido como o que vinha trabalhando com competência no começo do filme se una com tons de fábula a partir da situação insólita que vai se impondo numa rotina comum. Não um filme dócil ou sarcástico, que busque o riso fácil ou a tragédia a partir desse elemento estranho, mas sobretudo um filme que volta sua atenção para a maneira como os personagens se comportam em meio a essa situação. Ricky ganha muito com o ponto de vista da filha mais velha, igualmente feliz com a chegada de um irmão quanto a certa altura desejosa que com suas asas ele voe para longe e não volte mais. Seria um anseio por voltar a ser o centro das atenções da família ou pura vontade benfazeja de que a criança se visse em liberdade num mundo ao qual visivelmente não pertence? O filme com o seu realismo fantástico trabalha muito bem todas essas dúvidas girando em torno de várias perspectivas sem se agarrar unicamente a uma delas.

Da mesma forma que o retorno do pai da criança pode nos fazer pensar se ocorreu por realmente ele querer ajudar sua companheira a lidar com uma situação nova que ela não consegue ocultar por muito tempo, ou se foi movido por um desejo latente de alguma maneira lucrar com o seu rebento que chama a atenção da mídia ao sobrevoar o alto de um supermercado ou o céu por cima de uma multidão em campo aberto. Ozon não julga nem limita esses personagens, eles são o que são, e se pensam demasiados em si mesmos não o fazem por maldade nem despertam a antipatia do espectador (ao contrário). E não restam dúvidas quanto à dedicação e o afeto da mãe pelo estranho que lhe saiu do ventre, que a faz se perder e se reencontrar ao longo do filme. Sem resvalar na pieguice ou no sentimentalismo, Ricky confirma o talento de Ozon em lidar com suas personagens femininas. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.