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Críticas

Cineplayers

Um estupor sensorial nas telas, uma explosão de repressões morais.

7,0

Sangue Azul oferece uma experiência de contemplação. É um filme visualmente belíssimo que trata de uma história controversa e se arrasta para diferentes argumentos, todos esparsos, absolutamente intencionais, cujo objetivo não é seguir uma linha narrativa óbvia, mas permitir descobertas a partir de capítulos que o texto do filme utiliza para existir. Os capítulos são nomeados como “Homem Bala”, “Insônia”, “Infância”, “Angústia”, juntamente ao epílogo, “A Lenda do Pecado”. Antes da sessão, o diretor Lírio Ferreira explicou brevemente o percurso para a concepção da obra. Foi com Renato Ciasca e Beto Brant que a idéia nasceu em 2009. Um estupor sensorial nas telas, uma explosão de repressões morais. Figurando em uma das obras mais polêmicas de sua carreira que já conta com pérolas como Baile Perfumado (idem, 1997) e O Homem que Engarrafava Nuvens (idem, O, 2008), o filme transforma todas suas raízes narrativas em diferentes imersões palpitantes.

A abertura denota o preto e o branco como referência ao passado – esse referente ao personagem central, Zolah, e a própria história do cinema. Zolah está viajando numa embarcação e, enjoado, ruma a uma ilha paradisíaca. Ele vomita no mar. Conclui-se, entre outras coisas, sua repulsa ao caminho trilhado, já ciente do que irá encontrar. É tudo simbólico. Não demora até que a gente entenda as razões de tal percurso. Um circo chega até a ilha, local onde ele nasceu. Quando menino fora embora, ou melhor, sua mãe o entregou para o circo para que ali não mais residisse. O passado marca a história como sugestão depois de um afogamento. As relações dispostas implicam no que é moralmente proibido: o incesto. A incitação faz a obra pulsar e o cinema de Lírio se enfatiza no desejo preeminente, até quando ganha cores. Zolah, o homem bomba do circo, emerge do canhão sobre a ilha vulcânica e levanta a plateia.      

Essa dispersão proposta pelo cineasta tem grande função para as pretensões discursivas da obra, uma vez que não se atém unicamente a um personagem, mas vislumbra chegar até outros, todos com seus receios e temores. Os vínculos que se estreitam durante a chegada do circo Netuno abrem um leque de possibilidades que se formam de maneira episódica, como num turbilhão de relações. O Netuno vem do mar cobrar o passado. A ilha torna-se palco de mistérios e paixões, do sexo desvairado, do prazer sem vínculo. Zolah transa como se buscasse compensação pelas negações de outrora, transa pela lascívia de sua conduta amargurada frente ao que sente, ao que é proibido. Daniel de Oliveira sem pudores extravasa sua angústia em corpos que não são desejados por ele. Mantém um personagem para todos, o Zolah, e acoberta sua identidade verdadeira, Pedro, aquela que deixou quando fora embora. Esta somente emerge quando se reconhece ao lado de Raquel (Caroline Abras), sua irmã.

O misticismo vem conciliar todo o roteiro, com o xamanismo elucidando – o que pensei ser um complicador – às pretensões surrealistas do projeto. A presença e ausência do ator Paulo César Pereio é um engate de épocas que remetem a história do cinema brasileiro. Fora que seu personagem, Caleb, surge como alívio e diversão. Sangue Azul é um triunfo artístico com uma fotografia exuberante, favorecida diretamente pela paisagem natural da ilha de Fernando de Noronha. A cena do mergulho é definitivamente encantadora e salienta, nas profundezas, o silêncio e a companhia que a dupla Pedro e Raquel desejavam ter, sem olhares, sem palavras, imersos e aliviados. O trauma do pretérito é posto à prova. A cena tem um viés de Luc Besson em Imensidão Azul (Le Grand bleu, 1988), o filme traz uma constatação quimérica de As Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria, 1957) e os capítulos, enquanto homenagem, surgem como menção ao eterno Graciliano Ramos.

Visto durante o 6° Paulínia Film Festival

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