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Críticas

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A besta em cada um de nós.

9,0

Quando saiu da MGM para trabalhar na RKO, o russo Val Lewton deixou de trabalhar com o lendário produtor David O. Selznick como assistente para ser, ele mesmo, produtor do estúdio que tentava recuperar do dinheiro perdido com os fracassos comerciais dos polêmicos primeiros filmes de Orson Welles, sendo contratado para produzir filmes de terror baratos, curtos e chamativos, que atraíssem o público ao cinema. Porém, pouco encantado pelo estilo das outras produtoras de fazer terror, com monstros e situações que para ele eram definitivamente “pouco humanas”, o mesmo trouxe uma nova abordagem: ao invés do clichê gótico europeu e dos sustos fáceis, Lewton traria a abordagem do suspense e do conflito psicológico para aqueles filmes que, não fosse por ele, estariam destinados ao segundo escalão do cinema.

O resultado imediato foi Sangue de Pantera (Cat People, 1942), o primeiro filme da parceria com o cineasta francês Jacques Tourneur, que com o orçamento apertado de U$ 134 mil obteve um espantoso retorno de U$ 4 milhões, causando uma sensação entre público, crítica e estúdio que permitiu que sua equipe criasse com mais liberdade a partir de então – os outros filmes da parceria com Tourneur seriam A Morta Viva (I Walked With a Zombie, 1943) e O Homem Leopardo (The Leopard Man, 1943).

Mesmo o título sensacionalista não era o suficiente para esconder as incômodas questões filmadas por Tourneur no seu claustrofóbico e discreto preto-e-branco, principal arma do cineasta na hora de criar a atmosfera fantasmagórica de seus filmes; levantando temas como sexo, morte e instinto, os filmes mostraram uma nova dimensão e compreensão do terror pouco vista na indústria até então, já que os filmes eram feitos quase exclusivamente para entreter.

Sangue de Pantera inicia essa revolução silenciosa contando a história da imigrante sérvia Irena, que em uma tarde no zoológico chama a atenção de Oliver, um engenheiro, quando ele a vê fazendo desenhos de uma pantera negra que encara a mulher de dentro da jaula. Após a rápida construção da sedução, o filme logo chega na sua questão principal quando, após uma declaração, Irena revela que não pode se casar com Oliver por não ter condições de consumar o casamento; de onde veio, corre a lenda das mulheres-panteras, pessoas amaldiçoadas da Europa antiga que se distanciaram do cristianismo para praticar bruxaria, transformando-se em bestas selvagens sempre que tocadas por um homem – e Irena suspeita fortemente que seja descendente dessas pessoas. Mesmo achando estranha as crendices da mulher, ele diz que não há problema; os dois rapidamente casam, e Oliver a põe em um psicólogo para ajudar a superar seu medo.

Sentindo ameaçada tanto pelo psicólogo atraído por ela e que despreza a gravidade do seu medo quanto por Alice, uma colega de trabalho de Oliver apaixonada por ele platonicamente, e culpada por não conseguir consumar o casamento, o nível de paranoia e delírio da protagonista irá cada vez crescer mais até o momento onde, motivada pelo ciúme, descobrirá que sua condição sobrenatural é verdadeira.

Tourneur, mesmo com o pouco tempo de filme, trabalha com o suspense a conta-gotas; grande parte do filme é apenas indicial: animais irritados, roupas rasgadas, pegadas de sangue entre outros elementos que servirão para descrever o estado mental perturbado da protagonista, nesse filme que é um dos mais sutis, elegantes e cerebrais ao tratar do tema da repressão sexual.

Sangue de Pantera trata de uma besta escondida, da besta que a mentalidade machista, cristã e conservadora sempre temeu que fosse liberada pelo “sexo frágil”; é uma cultura onde o homem é um animal corrompido porque a mulher, segundo a mitologia, foi ambiciosa, se alimentou do fruto proibido e expulsou a humanidade dos campos da inocência. Irena é a perfeita aberração representando a generalizada neurose misógina; uma mulher tão obediente e tão reprimida que acaba liberando a besta interior de um jeito ou de outro. Normalmente usado em histórias sobre a libertação, os temas em Sangue de Pantera (sexo, repressão, comportamento, obediência) compõem uma história sobre autodestruição – o que torna, junto com o ingrediente sobrenatural (no cinema fantástico, as aberrações sociais provocadas pela “civilidade doente” nunca são apenas metafóricas), um dos terrores psicológicos dos mais cruéis que o cinema B já entregou.

Tourneur faz crescer rapidamente o que era pista para a impressão de presença sobrenatural que era especialista; a grande seqüência em que Alice é perseguida pelas ruas e a conclusão no clube é uma aula de compreensão, psicologicamente falando, do material que está sendo filmado: uma pequena ópera de som e imagem envolvendo sombras, ruídos, luzes fracas, quadros vazios, e a certeza que, apesar de não ter nada acontecendo, há algo de muito errado, desconhecido, maldito, enlouquecedor; que se concretizará ao final do filme, quando a pantera é então libertada, figurativa e literalmente.

A mão talentosa do diretor torna o ambíguo e complexo roteiro de DeWitt Bodeen e a cinematografia escura e opressiva de Nicholas Musuraca no que Val intentava desde o início: a antecipação, décadas antes de Psicose (Psycho, 1960) e Os Pássaros (The Birds, 1963) do terror urbano, que mora dentro de nossas casas e das pessoas que conhecemos, e o cuidado intenso de transformar um filme destinado às fileiras da marginalia de Hollywood em uma obra com muitas camadas a serem exploradas além do sobrenatural, elemento da ficção usado, desde sempre, como uma forma de denúncia dos nosso ódio, do nosso medo, das nossas imperfeições; e o terreno de fabulação para poder explorar o que poderia acontecer  quando, afinal, não fôssemos corajosos e íntegros o suficiente. Em toda sua falta de redenção, Sangue de Pantera é por excelência um dos grandes e definitivos clássicos do cinema de horror.

Edição (16.01.2017): Sangue de Pantera foi lançado em DVD no Brasil pela distribuidora Obras-Primas do Cinema, em edição especial que reúne cópia remasterizada do filme e mais de duas horas de extras. Compõem o material especial o documentário Val Lewton: The Men in the Shadows, sobre o lendário produtor do filme, especializado em cinema de horror, e entrevistas com o cineasta Jacques Tourneur e o diretor de fotografia da obra. Mais informações no site da distribuidora

Comentários (4)

Douglas Rodrigues de Oliveira | quinta-feira, 02 de Agosto de 2012 - 17:22

Ótima crítica! Tourneur era melhor do que Hitchcock pra mim. Gênio absoluto do cinema. 😁

Victor Ramos | quinta-feira, 02 de Agosto de 2012 - 19:56

Tourneur é um dos maiores. E estou à procura de O Homem Leopardo... o dvd está fora de cogitação (ao menos essa edição nacional furreca que está por mais de cinquenta reais) e não consigo encontrar um torrent vivo.

Adriano Augusto dos Santos | sexta-feira, 03 de Agosto de 2012 - 09:08

Tourneur é ótimo e ainda não vi seus mais famosos.
Acredito que se afirmará como um de meus preferidos.

Josiel Oliveira | terça-feira, 17 de Janeiro de 2017 - 19:03

"Sangue de Pantera trata de uma besta escondida, da besta que a mentalidade machista, cristã e conservadora sempre temeu que fosse liberada pelo “sexo frágil”..."
Matou a pau!... e parece foda esses extras

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