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Blood will run.

0,0

Mesmo sendo esteticamente muito diferentes, acabei associando Sangue e Honra (Ironclad, 2011) a 300 (idem, 2007), de Zack Snyder; afinal, são filmes que, em síntese, investem bastante em cenas de combate, que possuem personagens que resistem bravamente aos ataques de um oponente numericamente superior e que têm como base episódios históricos. O de Snyder surgiu como uma tentativa desesperada de levar à tela toda a energia da graphic novel criada por Frank Miller e acabou se tornando uma quimera fac-similada que oscila entre cinema e arte sequencial ambulante. Esse de Jonathan English não segue o viés de 300, mas mesmo assim também não deixa de explicitar, da mesma maneira pungente, um desejo particular – o de salientar ferozmente a violência.

É importante, todavia, não esquecer que 300 é o que é não por ser um filme bom, mas por ter se tornado uma marca, um evento, um produto viral que carrega uma identidade que independe de qualquer qualidade positiva. É compreensível não gostar dele, mas difícil não reconhecê-lo enquanto fenômeno, que, aliás, é ainda hoje mimetizado em diversos meios, principalmente na internet. Por sua vez, Sangue e Honra, trabalho que logicamente não foi projetado com o anseio de receber retorno semelhante e que chegou ao Brasil diretamente em DVD e, portanto, não passa de um filme que provavelmente jamais será popular, padece sobre suas ambições, pois toda a contundência (que é supostamente sua marca) que tenta produzir é profundamente alijada por algumas incursões estroinas da câmera de  English.

Sangue e Honra se passa no século XIII e trata da tomada do Castelo de Rochester pelo barão William d’Albany (Brian Cox) e seus aliados – entre eles Thomas Marshall (James Purefoy), um cavaleiro templário que a partir de determinado momento começa a vacilar entre seus votos religiosos e o desejo que nutre por uma mulher casada. Albany sai à procura de homens que queiram defender sua causa, que é combater John, monarca que entrou para a história por ter assinado a Magna Carta, documento que impedia o rei de exercer o domínio absoluto. John decide, mesmo depois de assinar a carta, recuar e punir todos aqueles que o forçaram a aceitar a redução de seus poderes ou que a ele se oponham nesse momento. Apoiados pelo arcebispo Stephen Langton (Charles Dance), Albany, Marshall e demais companheiros se instalam em Rochester, cujos portões são abertos pelo administrador Reginald de Cornhill (Derek Jacobi), e lá permanecem até o fim enfrentando diversas intempéries, como as constantes tentativas de invasão das tropas do rei e a escassez de alimentos no inverno.

Com cerca de onze minutos transcorridos, English mostra a que veio exibindo uma sangrenta batalha onde observamos dois homens cortarem a língua de um abade e um sujeito que havia traído o rei sendo enforcado. Como aconteceria nas demais cenas, a câmera acompanha sofregamente os golpes brutais dos combatentes, assim mantendo-se livre e podendo passear alucinadamente pelo campo de luta a fim de infligir ao espectador uma vertigem áudiovisual que, apesar de funcionar enquanto gerador de força centrípeta, se torna o próprio calcanhar de Aquiles do filme. Esse recurso-sugestão contraditoriamente destrói algumas oportunidades de nos chocarmos com o sangue que jorra de membros decepados ou com as fraturas expostas criadas por machados e espadas. Ora, nada há de errado nessa tendência de querer fazer com que “sintamos” o que as personagens sentem, vejamos o que (e como) elas veem, mas ou chocam-se os ovos, ou prepara-se uma omelete. Irresoluto, Jonathan English agoniza perante a necessidade elementar de saber qual é o melhor modo de atingir seus propósitos – se pairando sobre as imagens ou correndo ensandecido através delas. Sangue e Honra é sim violento, mas a maneira como ela (a violência) chega aos nossos olhos só gera o deslocamento advindo de uma manipulação solapada e rasteira, pois é difícil sabermos se estamos verdadeiramente vendidos às suas intenções ou se simplesmente nos sentimos tediosamente nauseados pelos tiques epiléticos do diretor, que, por sua vez, sentenciam a inoperância da “visceralidade” exibida.

Resta, então, tentar explorar, pelo menos com o mínimo de coerência, os elementos de uma história que, como já era previsível, se desenrola quase que inteiramente em um espaço apenas: o castelo tomado pelos rebeldes e sitiado pelo rei e seu exército de mercenários dinamarqueses comandado por um grandalhão chamado Tiberius (Vladimir Kulich), personagem talhada para parecer uma espécie de viking-chefão-chucknorris, mas que fica estagnado na aparência e, mesmo no calor de suas participações mais afetivas, não deixa de ser um parvo fantoche. Acompanhamos aqui também a evolução do amor entre Marshall e Isabel (Kate Mara), que é proibido tanto por ele temer quebrar seu elo com Deus quanto por ela ser esposa de Cornhill. E é nessa clausura, diante da iminência de morte, que o jogo de resta um proposto, sem jamais sair do lugar, segue até o fim cumprindo as mais inócuas convenções de roteiro.

Há um momento, ainda que não menos pobre que os demais, em que Sangue e Honra tenta mostrar que existe uma reserva de vida além de sua barbárie problemática: aquele em que Isabel diz a Marshall que em nome de Deus ele está empunhando uma espada e matando e que o amor entre eles não pode ser mais pecaminoso do que isso. Esse diálogo faz ponte com o ridículo discurso do rei em que ele, com extrema exaltação, brada que sua condição é somente a pura e inequívoca vontade de Deus. Portanto, parece inaceitável matar em nome de um Deus que dá poderes a um déspota. A quebra dos grilhões que prendem Marshall é posteriormente representada em batalha, mais precisamente quando sua espada é partida ao meio. Assim, English entrega a razão de existir de seu filme e encerra-o com uma já não tão sufocante inércia.

Diante disso, sou forçado a crer que me lembrei de 300 porque – sem esquecer de que, ao contrário deste, estava diante de um filme ao qual fora delegada pouca relevância e que rasgou o caminho direto para as prateleiras das locadoras do país – durante os primeiros minutos de contato pensei que, tal qual Snyder, English estivesse sequioso por algo que desse a seu trabalho a força necessária para caminhar sozinho, mas foi um grande engano; e por mais que qualitativamente não consiga estabelecer mensurável distância entre os dois, o primeiro, a julgar também por seus demais filmes, não é falaz, pois vende o que anuncia, por pior que isso seja. Logo, tão tolos quanto minha insistente comparação são Sangue e Honra e todas as suas supostas idiossincrasias.

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