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Críticas

Cineplayers

Comédia romântica ganhadora do Oscar de 1961, escrita e dirigida por Billy Wilder, traz temas polêmicos e diálogos inspirados.

9,0

Duas palavras são fundamentais para entender o premiado Se meu apartamento falasse (The Apartment, 1959) de Billy Wilder: superfície e profundidade. E não: nem sempre no cinema esses dois conceitos são opostos. No caso do filme de Wilder, vencedor do Oscar de 1961, essas duas ideias funcionam de forma complementar, sobrepostas.

Na superfície, temos uma trama simples: C. C. Baxter (Jack Lemmon) é funcionário de uma grande companhia de seguro em Nova Iorque nos anos 1950. Solteiro e em busca de promoções no trabalho, ele passa a emprestar o seu apartamento para que os chefes casados encontrem-se com as amantes. A situação começa a mudar quando Baxter interessa-se por Fran Kubelik (Shirley MacLaine), ascensorista da firma em que trabalha – a princípio, a típica mocinha espirituosa e respeitável. A partir desse enredo, poderíamos esperar uma comédia romântica de formato tradicional: o herói um pouco desvirtuado encontra a mocinha redentora e, depois de passar por algum conflito sem muita importância, os dois vivem felizes para sempre.

Mas as imagens de Wilder explodem em novas camadas e não em clichês. Uma das questões centrais nesse filme é a diferença entre o que cada personagem é (profundidade) e o que ele aparenta ser para os outros (superfície) – e, consequentemente, os curtos-circuitos entre estas percepções.

Assim, temos um personagem como o de Baxter, que passa grande parte do filme encenando-se aos olhos dos outros: para os vizinhos, um grande garanhão; para os chefes, o funcionário subserviente e ambicioso; para Fran Kubelik, o colega de trabalho gentil. Não se trata de dizer que uma ou outra encenação seja mais verdadeira. As diversas superfícies se sobrepõem sem contradições e, dessa forma, entramos no terreno da profundidade.

Essa mesma lógica é válida para a mocinha da história, Fran Kubelik. Baxter apaixona-se pela colega de trabalho bem-humorada e que não sai com qualquer um. O que ele descobre é uma mulher perdidamente apaixonada pelo chefe casado – o que igualaria a senhorita Kubelik a todas outras muitas mulheres que passam por seu apartamento na sua ausência. Mas no caso de Fran, o curto-circuito entre aparência e essência é por demais forte e culmina na tentativa de suicídio: profundidade.

E, ainda assim, sem traumas entre superfície e profundidade, falando de suicídio, adultério e sexo livre na Hollywood dos anos 1950, Wilder consegue fazer um filme de uma leveza excepcional. Grande parte do charme vem da genialidade dos diálogos: trocadilhos, conversas cheias de réplicas e jogos de palavras inteligentes dominam o filme. Uma característica evidente do cinema de Wilder, que hoje encontramos sobretudo nas séries televisivas. Este recurso poderia parecer um pouco barato e soar anti-natural: como dois personagens em meio a uma crise seríssima conseguem continuar conversando de forma tão espirituosa? A resposta vem da própria estrutura que o filme criou: esses personagens são acima de tudo fingidores, personagens de si. Um exemplo dessa naturalidade de encenação é a primeira vez que Baxter e Fran jogam baralho – não é a toa que esse jogo é retomado justamente no final do filme, como se nunca tivesse sido interrompido.

Se o roteiro original e a direção de Wilder foram igualmente premiados pela Academia – o filme também ganhou o Oscar de direção de arte e edição, totalizando cinco estatuetas –, parece injusto que Jack Lemmon não tenha sido eleito o melhor ator daquele ano. Toda esta estrutura de superfície e profundidade está ancorada na atuação de Lemmon, que consegue o tempo inteiro sustentar um personagem de uma ambiguidade impressionante: ambicioso e ético, parasita e explorado, apaixonado e conivente, etc. Sem maniqueísmos, reviravoltas ou grandes redenções.

É comovente que o filme não termine com um grande beijo cinematográfico dos rostos gigantes, mas com uma banal partida de baralho. O que sela a união de Fran e Baxter é muito mais uma cumplicidade na encenação do que um romantismo ilusório. Superfície e profundidade reconciliadas pelo cinema.

Comentários (3)

Lucas Vitoriano | quarta-feira, 22 de Agosto de 2012 - 16:16

crítica perfeita. exatamente a grandiosidade do filme se firma nessas palavras.

Angelão | terça-feira, 07 de Maio de 2013 - 15:42

Excelente texto mesmo. Uma obra memorável.

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