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Sedução e Vingança

(Ms.45, 1981)
7,6
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138 votos
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Críticas

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Vestida para matar.

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Há nos primeiros passos de Abel Ferrara no cinema uma intensidade que domina a tela através de personagens que seguem instintos de violência induzida. Esses instintos são um tanto absorvidos do perfil de Travis Bickle, o taxista justiceiro do clássico Taxi Driver (idem, 1976) de Martin Scorsese. Em seu longa de estreia, O Assassino da Furadeira (The Driller Killer, 1979), o próprio Ferrara encarna um jovem pintor que, de posse de uma furadeira, sai pelas ruas cometendo assassinatos. Existe um impulso esquizofrênico condicionado pela baderna urbana que faz com que Reno (Ferrara) sinta que é necessário “limpar” sua cidade. No trabalho subsequente, Sedução e Vingança (Ms.45, 1981), Zöe Lund interpreta Thana, uma jovem bela e acanhada que, depois de ser estuprada duas vezes no mesmo dia, inicia uma guerra impiedosa contra os homens.

Em Sedução e Vingança, Ferrara mantém muito da essência de gueto presente em O Assassino da Furadeira. As ruas exibidas nesse segundo filme estão sempre trasbordando uma violência latente, pois são entupidas de diversos arquétipos marginais: tarados, gangues, becos encardidos etc. Diante disso, a protagonista – que se tornará uma serial killer implacável – mostra-se completamente frágil e deslocada no início; aliás, a mais inofensiva entre suas amigas. Ferrara parece querer mostrar-nos que qualquer rostinho bonito pode esconder um demônio adormecido, que o perigo pode vir de qualquer parte, que o caos das metrópoles – ao passo que nos torna tão impotentes – pode conferir-nos estímulos monstruosos.

Sedução e Vingança é um retrato da violência pela violência. Então, é necessário dizer que, diferentemente da personagem de De Niro em Taxi Driver, a de Lund - movida por motivos inicialmente pessoais - toma a si própria como representante do mal que supostamente os homens fazem a todas as mulheres. Travis, por sua vez, se compadece de uma jovem prostituta e se revolta contra os políticos, tornando, assim, sua missão algo mais próximo de altruísta. Abel é mais rústico, mas não menos profundo. Ferrara é profundo principalmente quando o assunto é a sua relação firme e detalhada com seus signos e referências constituintes.

Após sair de um supermercado – numa cena rodada em um beco escuro e tomado por latas de lixo – Thana é abordada por um indivíduo mascarado e estuprada pela primeira vez. A expressão da face de Lund durante o ato, como não poderia ser diferente, exala medo e atordoamento. O diretor finaliza mostrando, de cima, a protagonista recolhida no chão – algo que não nos diz outra coisa que não a impotência desta diante do que acabara de acontecer. O estuprador (interpretado pelo próprio Ferrara) diz que regressará, e isso de fato acontece, porém não de início, uma vez que ela é atacada novamente momentos depois, mas por outro sujeito. Apenas mais tarde sua imagem surgiria nos devaneios da moça. Abel, então, resume tudo aos atos de dois homens, o que fará com que Thana não consiga mais distinguir alguém do sexo masculino de um inimigo em potencial ou de alguém que mereça indubitavelmente pagar por um crime, digamos, imanente ao gênero.

Em seu apartamento, ela é surpreendida por um ladrão que, não conseguindo obter nada de valor, torna-se o segundo a tomar seu corpo. Num vacilo, o homem deixa cair seu revolver (o calibre 45 que posteriormente seria usado pela protagonista), e Thana, que durante o coito já mostrava uma expressão facial consideravelmente diferente daquela que observamos na primeira vez em que fora violentada (seu olhar agora é mais colérico), aproveita para acertá-lo com um pequeno objeto. Estando o invasor no chão, ela corre, pega um ferro de passar e dá-lhe o golpe final. Muito semelhante é seu movimento aos executados por Catherine Deneuve em uma cena de assassinato de Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965) – filme que, aliás, parece ter deixado marcas significativas em Ms.45. É iniciada, portanto, a mudança de Thana, tão impactante quanto envolvente.

Depois disso, a moça passa por uma série de provações, principalmente em seu relacionamento com as pessoas que a cercam. Sua vizinha, por exemplo, torna-se uma grande pedra em seu sapato, especialmente por conta de seu curioso cãozinho. É aí onde Ferrara evoca Polanski novamente, na imagem do animal, que está presente também de diversas formas em Repulsa ao Sexo. Carol Ledoux (Deneuve) também tem um vizinho que possui um cão, e durante toda a projeção a câmera pulveriza-nos com cachorros de porcelana, pelúcia, em fotografias etc. O mais curioso é saber que, entre outras coisas, o cão pode simbolizar tanto o vigor sexual quanto a violência. Daí surge (contando com certas distinções, claro) a ponte Thana-Carol. A repulsa, o descomedimento, a esquizoidia, tudo está presente em Sedução e Vingança.

Somente após o terceiro homicídio Thana passa a vestir-se – de fato – para a "guerra" e a assumir inteiramente sua nova postura. Se em Taxi Driver Travis faz um moicano e delega à sua imagem uma agressividade punk contestadora, em Sedução e Vingança as roupas mais chamativas e o batom voluptuoso são os acessórios que caracterizam a matadora a quem assistimos atuar. Ainda no que diz respeito à personagem de De Niro em relação à de Lund, podemos notar um deslocamento, pois, como já disse anteriormente, o projeto de “limpeza” de Travis parece ser um processo “metonimizado” – a julgar pelo fato do taxista “apenas” (como se isso fosse pouca coisa) combater os cafetões que parasitam a juventude de Iris (Jodie Foster) e um candidato à presidência. Portanto, recortando representantes da política e do mundo suburbano, Scorsese utiliza partes pelo todo; Ferrara, pelo contrário, faz questão de fixar-se sobre esse todo, e para isso não faz distinção entre culpados e inocentes.

Percebemos, então, que uma coisa efetivamente instigante no Abel Ferrara de Sedução e Vingança é a sua relação com o quadro, a articulação que ele confere aos objetos-signos, o impressionante desenvolvimento das possibilidades de leitura dentro de um filme de índole tão underground. Por exemplo, há uma cena no lugar onde a protagonista trabalha, já próxima ao final (onde presenciaremos uma festa a fantasia), em que ela está parada e, ao seu lado direito, na parede, podemos ler em um pequeno letreiro a palavra men (homens); do outro lado, lemos party tonight (festa esta noite), escritas em vermelho e preto, que são justamente as cores da roupa que ela veste nesse exato momento. Assim, temos à nossa frente uma curiosa imagem, um engenhoso conjunto que antecipa sugestivamente o final sangrento: Thana + roupa negra + festa + homens = vermelho (sangue).

Por fim, uma cena sublime de violência: em câmera lenta, Thana – vestida de freira – distribui tiros no salão onde está sendo realizada a tal festa, dizimando, à Carrie – A Estranha (Carrie, 1976), os homens presentes. É o ápice de seu ódio, e também do virtuosismo do diretor. Para impedir a continuação do massacre, uma de suas amigas pega uma faca e apunhala-a por trás. O mais forte nisso tudo, além do tom sorumbático criado pelo slow motion – que causa terror através dos semblantes que expressam um medo indescritível e dos sons guturais advindos dos gritos das personagens –, é como a moça segura sua arma branca, pois ela o faz de uma maneira que torna aquele objeto algo semelhante a um falo. É como se aquilo fosse um pênis que fere – física e espiritualmente – Thana, a ponto dela raivosamente virar-se e expelir – num misto de indignação e tristeza – a palavra sister (a única que sai de sua boca durante o filme inteiro, e também a mais ambígua, tendo em vista o fato de ela estar vestida de freira e considerar – aparentemente – que haja uma irmandade implícita entre todas as mulheres).

Sedução e Vingança é, dessa forma, tão underground e enérgico quanto preciso em sua composição, principalmente no que diz respeito à ressignificação de imagens. É um grande filme – sustentado (nem precisaria dizer) por um roteiro absolutamente trivial e fixado entre Brian De Palma e Quentin Tarantino. É, acima de tudo, algo genuinamente de Abel Ferrara.

Comentários (3)

Angelão | segunda-feira, 28 de Maio de 2012 - 22:17

Bela crítica.

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