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Críticas

Cineplayers

Círculos de destruição.

9,5
Veículos andam em círculos com certa constância em Sem Data, Sem Assinatura, o longa de Vahid Jalilvand que acaba de ser escolhido como representante do Irã para o próximo Oscar de filme estrangeiro. Essa característica, que com certeza indicaria uma forma de mostrar repetição e retrocesso, seria um aspecto situar o país em avanços como sociedade, mas o diretor parece usar isso de maneira irônica e construtiva. Porque o Irã do belo filme de Jalilvand é muito mais complexo do que isso, e talvez até (porque não?) mais moderno do que nos acostumamos a ver nos últimos anos através do cinema. É como se o diretor dissesse que seu país está mudando, mas calma lá, nada é tão veloz assim... os carros giram em círculos, mas ainda giram. E as luzes podem até demorar, mas se acendem em algum momento.

É exatamente na escuridão que se dá o ponto de partida do filme. Dos protagonistas até se tem algo da fisionomia com mais clareza, mas no geral é madrugada, está escuro e todos estão embaçados, diria até desfocados, assim como todo o ocorrido. Um efeito dominó, onde um carro bate em outro que bate numa moto, derrubando uma família que estava nela; um dos filhos desse núcleo acidentado no dia seguinte estará morto. Se no acidente o menininho bateu a cabeça, uma autópsia descobre que ele também estava com botulismo e a ingestão de alimento apodrecido causaria sua morte de qualquer maneira. Mas aquela morte, aquele dia, o que causou? Não ajuda o fato do "causador" da queda da moto ser um dos médicos do hospital onde o corpo da criança deu entrada, e tanto ele quanto o pai se embrenharem numa via crucis de extrema dor. E ainda mais extrema solidão.

O filme aborda a dor desses dois homens quebrados sem qualquer discrição; eles sofrem, não é pouco, e seu sentimento é palpável. Ao menos uma cena protagonizada pelo pai do menino representa das coisas mais dolorosas filmadas na temporada, um sentimento de devastação que é aumentado pelo ambiente de abandono onde ele está. Se aos homens cabe o papel do desespero e do degredo emocional, às mulheres protagonistas é delegada a tarefa de decidir, comandar e seguir. Claramente se observa também nesse aspecto o caráter evolutivo de uma sociedade ainda machista em essência, mas com sede de mudança. O filme também se encarrega de dar representação a denúncia de violência contra a mulher, numa sequência que jamais seria esperada na década passada em um filme vindo do Oriente Médio, deixando o espectador atônito.

O filme tem um trabalho acertadissimo do ponto de vista técnico, com o som invadindo os corredores do hospital onde se passa grande parte da ação sempre em momentos decisivos, uma montagem impecável a cargo do próprio diretor ao lado de Sepehr Vakili, que trabalha o todo no limite da introspecção e da elipse, sem deixar de fazer sentido e de criar ritmo e tensão. Jalilvand também cuidou do roteiro junto a Ali Zarnegar, e a quatro mãos eles conceberam diálogos de alto calibre e uma estrutura narrativa com o padrão Irã de qualidade, sempre movendo sua trama pra frente, sem tornar redundante e sabendo dar voz e mover os tabuleiros do xadrez, como visto nos melhores filmes de Asghar Fahradi. O diretor não incorre no erro de ocidentalizar sua estrutura e estilo, deixando o que há de mais local em sua mise-en-scene, sem ser intoxicado com "ocidentalidades", e observando como o arcaico ainda consegue se fazer presente, mesmo com tanto de evolução. 

O que também é tipicamente iraniano e se mantém aqui é o alto padrão de seu elenco. O trabalho conjunto de Navid Mohammadzadeh e Amir Aghaee é inacreditável, uma dupla de atores em voltagem máxima de seu ofício, que nos arrancam de nossos lugares e entregam, sozinhos, trabalhos de arte. Como já dito, essa regularidade no elenco do filme sai deles, passa pelas atrizes que interpretam suas esposas e alcançam cada coadjuvante e elenco de apoio do longa, todos impecáveis. O conjunto harmônico era essencial para contar uma história tão sombria e ambígua da alma humana, que mostra seus personagens em dubiedades morais e optando por atalhos emocionais que só cobram a conta já na próxima esquina, um eterno círculo onde a evolução e o atraso estão sempre passando pela nossa janela de novo e de novo, tirando novas camadas de julgamentos a cada nova cena e deixando apenas a dúvida.

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