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Críticas

Cineplayers

O herói nacional que nunca se apagou.

8,0

Virou meio que um jargão popular a pergunta “o que você estava fazendo quando Senna morreu?”. Não sei quanto a vocês, mas lembro perfeitamente de estar sentado em frente à TV assistindo à corrida e, horas depois, chorando muito. Lembro também do meu pai comentando com o vizinho, que encerava seu Monza 80 e alguma coisa no estacionamento ao lado do campo de futebol, horas depois da confirmação do óbito: “Meu filho chorou a tarde toda. Mas não fica assim não, filho, a vida é assim mesmo”. Passados dezesseis anos desde então, chega finalmente aos cinemas sua esperada biografia, intitulada simplesmente de Senna (idem, 2010), que conta toda a vida automobilística do piloto, desde suas primeiras corridas de kart até o acidente fatal, em Ímola, que deixou uma nação inteira triste e carente.

A verdade é que a vida de Senna já implorava por um filme quase que como uma tragédia escrita pelo melhor roteirista de Hollywood em sua época de ouro. O praticamente desconhecido diretor Asif Kapadia acerta em alguns pontos fundamentais, como criar uma narrativa a partir de apenas imagens de arquivos (a grande maioria dos bastidores da vida de Senna), fazendo com que o próprio piloto narre as passagens importantes, expondo seu modo de pensar e agir. O diretor acerta também, sempre que possível, ao mostrar as imagens de dentro do cockpit, aproximando o público daquilo que era vivido por Senna – ao mesmo tempo em que, ao acompanhar a câmera interna do piloto por aproximadamente trinta segundos antes da colisão na curva Tamburello, somos torturados por um destino mórbido que sabemos que irá acontecer, não podemos evitar e, por aqueles poucos longos segundos, dividimos também as últimas imagens vistas por Senna de maneira sufocadoramente mártir.

O diretor trabalha também com a constante noção de que sabemos como aquilo tudo irá acabar – e nos tortura ainda mais com isso. Ao inserir frases, por exemplo, dos pais de Senna, dizendo que têm medo de que o filho se machuque, fica óbvio o sentimento de dor por sabermos exatamente o que aconteceria com ele alguns anos depois, assim como o sonhador Senna, em 1992, dizendo que ainda irá viver muito, que há muito o que fazer, que ainda está na metade da vida, quando sabemos que a verdade não é bem essa. E o que dizer de Xuxa, uma de suas grandes paixões, que depois de um cochicho ao pé do ouvido ao vivo, distribuiu beijos no rosto de Senna, um para cada ano de sucesso, parando justamente em 1993, seu último grande campeonato, quando ficou em segundo lugar, antes do trágico ano de 1994, onde correu apenas duas vezes, sem pontuar, antes de falecer em um acidente até hoje inexplicado na terceira corrida (uns têm a teoria de que a barra de direção quebrou, enquanto outros apontam como causa a temperatura dos pneus, que esfriaram e fizeram o carro ‘decolar’ por milésimos de segundos antes de Senna virar o volante).

Ao mesmo tempo em que acerta em diversos momentos, a curta duração do documentário (pouco mais de uma hora e meia) permitia que o diretor se aprofundasse em alguns momentos dentro da pista, pois o foco ficou muito fora dela. Se vemos momentos importantes da carreira de Senna, como os seus três campeonatos mundiais, sua disputa acirrada com Prost e a incrível vitória no Brasil, outros igualmente importantes ficaram de fora, como quando Senna largou em quarto lugar no GP da Europa, em 1993, caiu para o quinto e, ainda na primeira volta, passou todos e virou em primeiro, em uma pista considerada horrível para ultrapassagens. Não satisfeito, ele ainda deu uma volta em todos os participantes da corrida, exceto em Damon Hill, segundo lugar, já que Senna ficou segurando Prost na terceira posição para que Hill não fosse ameaçado. Detalhe: na chuva e com pneus de pista seca. Coisa de gênio. Foi um GP tão marcante apenas citado pelo filme, não mostrado.

Falando em Prost, aliás, o filme foca muito em retratá-lo como um vilão. A história não é bem assim. Prost era como Senna: viciado em vencer, mas sem a adrenalina que fazia com que Senna cometesse alguns atos de irresponsabilidade na pista (o que também fazia dele um gênio). Prost era muito mais calculista, jogava com o regulamento ao seu lado, compensando os segundos que perdia no volante com as regras e muito apadrinhamento. Segundo ele, o problema de Senna “é que ele acha que não pode morrer”. Retratado de maneira extremamente unilateral, o filme não precisava disso para engrandecer Senna. Mesmo com este defeito, a disputa entre os dois recebe excepcionais tomadas, que qualquer fã de Fórmula 1 vai delirar em assistir.

Com esse foco demasiadamente errado na disputa Senna / Prost, outros duelos fenomenais travados pelo piloto acabaram sendo ignorados, como sua disputa com Nigel Mansell, da Williams. Há pelo menos dois momentos que deveriam estar no filme: a imagem inesquecível de ambos correndo lado a lado em uma reta, com direito a faísca e tudo, quase se tocando, e um outro GP, quando Senna quebrou na última volta e pegou carona em cima da Williams de Mansell, que levou o arquirrival até os boxes de sua equipe. Alguns, inclusive, consideram este o melhor momento que a Fórmula 1 já viu. Há também o GP em que Senna, após ver o amigo se acidentar, para o seu carro no meio da pista e desce para socorrê-lo, não se importando com as posições que viria a perder. Ou então a pole position que ele fez sem querer, por estar com o rádio com defeito e não ouvir os pedidos desesperados dos engenheiros para que ele tomasse mais cuidado. Ou ainda quando Senna deixou Berger passar, na última volta, para que este conseguisse sua primeira vitória na Fórmula 1. São muitos e muitos a serem citados, tudo poderia estar lá, no filme, enriquecendo-o ainda mais.

Apesar destes deslizes, assistir a Senna é uma obrigação para qualquer um que considere ele realmente um herói ou ame o esporte. Além das imagens que não estão lá, tudo o que está faz valer a pena. E muito. Afeta tanto aqueles que já sabem quem é Senna (e chorarão de saudades novamente em uma ferida que não cicatrizou) quanto quem não sabe quem ele é. Reconhecido como herói, tratado como mito em um Brasil pré-real, onde os ricos ficavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez se afundando mais em uma inflação que mudava os preços dos produtos diariamente. A única alegria, segundo relatos do próprio filme, era ver Senna pelas manhãs de domingo.

Uma viagem no tempo (perceba como Senna trocava as marchas no canto direito do carro, e não por botões no próprio volante, como é hoje), de boas e más recordações. Uma pessoa apaixonada por aquilo, que não media esforços para ser o melhor e representar uma nação carente de heróis. Seu esforço para levantar a bandeira, ao som de Galvão Bueno e a famosa vinheta, foram imortalizados por uma tragédia que, se não tivesse acontecido, talvez Senna não tivesse o valor que merecidamente tem. As imagens dos bastidores ajudam a formar uma ideia do que sempre foi a Fórmula 1, mas só agora parece estar tomando os ares de gravidade que sempre teve: algo político, que envolve muito dinheiro e gente importante. Senna sempre lutou contra isso pelo seu amor à velocidade, ao esporte.

Essa politicagem, por exemplo, custou a vida de Senna para que medidas mais drásticas com relação à segurança dos pilotos fossem tomadas, como uma menor exposição da cabeça (antes os pilotos ficavam muito acima – justamente o que matou Senna), ajustes nos traçados (a Tamburello já tinha tido pelo menos dois acidentes graves, um em 87, com Nelson Piquet, e outro em 89, que quase custou a vida de Berger). O balanço final é que você irá sorrir, chorar, ficar revoltado, em uma montanha russa de emoções que poucas personalidades conseguiriam causar em seu público. Diferente do balanço, a sensação que fica em emoção depois dos créditos é de saudade, muita saudade de alguém que partiu antes do que devia. A montagem no final, com as pessoas no enterro e em momentos que marcaram a vida do piloto, levará a grande maioria às lágrimas.

Comentários (1)

Daniel Oliveira | segunda-feira, 15 de Agosto de 2011 - 09:17

Belíssima crítica.
Belíssimo documentário.

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